''Eu tenho meus motivos pra ser exatamente do jeito que eu sou, acredite.''

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Razão, crença e dúvida

Meu primeiro contato com a história que segue foi em julho passado, no blog de Richard Wawkins (www,richard-dawkins.net, site que se autodenomina "um oásis de pensamento claro"). Dawkins é o evolucionista britânico que se tornou apóstolo do racionalismo ateu e cético, escrevendo, entre outros livros, o best-seller mundial "Deus - Um Delírio" (Companha das Letras, 2007).
Mas eis a história. Em 2002, na Austrália, o casal Sam, de origem indiana, perdeu a filha, Glória de nove meses.
A menina, a partir do quarto mês, apresentou sintomas de eczema infantil, que é uma condição alérgic
a que afeta mais de 10% dos bebês e, geralmente, acalma-se ou some aos seis anos ou na adolescência. As causas do eczema infantil não são bem conhecidas; a medicina administra a condição da melhor maneira possível, esperando que passe.
O problema é que o eczema (pele seca com prurido) dá uma vontade de se coçar à qual as crianças não resistem, e a pele, ferida, abre-se para qualquer infecção. Foi o que aconteceu c
om Glória, que morreu de septicemia.
Não foi falta de sorte: o pai de Glória é homeopata e, em total acordo com a mulher, medicou a menina só com remédios homeopáticos (insuficientes na condição da menina). Isso até o fim, quando ela definhava pelas infecções internas e externas. Glória foi levada a um hospital três dias antes de morrer: as bactérias já estavam destruindo suas córneas, e os médicos só puderam lhe administrar morfina para aliviar seu sofrimento.
Os pais de Glória foram presos, acusados de homicídio por negligência e, no fim de setembro, condenados pela Justiça australiana: o pai, a oito anos de prisão, a mãe, a cinco anos e quatro meses. Segundo o juiz, Peter Johnson, ambos os pais "faltaram gravemente com suas obrigações diante da filha": o m
arido pela "arrogância" de sua preferência pela homeopatia e a mulher pela excessiva "deferência" às decisões do marido.
Os termos da decisão de Johnson são admiráveis. A obediência - ao marido, no caso-, seja qual for seu fundamento cultural, nunca é desculpa; ela pode ser, ao contrário, o próprio crime. E, sobretudo, o marido é condenado não por recorrer à homeopatia, mas pela "arrogância" que lhe permitiu perseverar em sua crença e em sua decisão diante do calvário pela qual passava a menina.

A sentença de Peter Johnson é, para mim, um modelo de racionalidade, porque estigmatiza a certeza independentemente do objeto de crença. Ou seja, o juiz não discute o bem fundado da autoridade do marido e, ainda menos, os méritos respectivos da homeopatia e da medicina alopática. Tampouco ele quer limitar a liberdade de opinião, garantida pela Constituição; a sentença penaliza apenas, por assim dizer, a rigidez.
O surpreendente é que, ao ler os comentários dos leitores do blog de Dawkins, os "racionalistas" parecem tão "rígidos" quanto o pai de Glória. "A razão" (que eles confundem com uma visão aproximativa do estado atual da arte médica) é, para eles, um objeto de fé, uma crença pela qual facilmente condenaríamos os "infiéis" à fogueira.
Contardo Calligaris


Se me coloco no lugar dos pais de Glória, não consigo imaginar uma crença, por mais que ela possa ser crucial para mim, que resista à visão do corpinho de minha filha transformado numa ferida aberta e purulenta.
Antes disso, eu (embora confiando, a princípio, na m
edicina alopática) já teria convocado não só os homeopatas (o que, aliás, seria uma banalidade, visto que a homeopatia é uma especialidade médica reconhecida) mas também todos os xamãs, feiticeiros e curandeiros que me parecessem minimamente confiáveis. E, é claro, embora me considere kardecista (mas ultimamente não praticante) , eu rezaria sem nenhuma vergonha e sem sentimento de trair minhas "convicções", pois a primeira delas, a que resume minha racionalidade, diz, humildemente, que há muito no mundo que minha razão não alcança.
Se fosse testemunha de Jeová, e minha filha precisasse de uma transfusão (que a religião proíbe), abriria imediatamente uma exceção. Mesma coisa se fosse cientologista, e minha filha precisasse de ajuda psiquiátrica. Sou volúvel e irracional? O fato é que tenho poucas crenças (provavelmente n
enhuma absoluta), e acontece que, para mim, a razão é uma prática concreta, específica: um jeito de pesar e decidir em cada momento da vida.
Com o juiz Johnson, pergunto: onde se manifesta a razão? Na arrogância das certezas
ou na capacidade de duvidar?






símbolo da cientologia

2 comentários:

  1. Infelizmente vivemos uma época, em que perdemos o sentido do correto. Certezas que não se justificam aparecem em todos os lugares.
    A vida nos foi emprestada para ser cuidada. Filhos estão acima de ideologias.
    Uma linda semana para ti.

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  2. Não li o que escreveram o RD e os comentadores. Admito que tivessem sido rígidos. Qualquer ideia ou prática pode ser defendida com excesso de rigidez - o que, em princípio, é um defeito desses defensores (normalmente há outros melhores) e não da própria ideia.

    Fiquei com uma dúvida ao ler o seu post: a quem imputa a rigidez - aos referidos defensores da racionalidade ou à própria racionalidade?

    Relativamente à homeopatia: não é preciso ser especialmente rígido para rejeitá-la, e rejeitá-la não implica considerar a medicina "tradicional" infalível - há imensos estudos que mostram que os resultados da homeopatia não são superiores ao nível do acaso (ver nos blogues De Rerum Natura e Crónica da Ciência, por exemplo).

    Espero que não considere esta pergunta um sinal de rigidez: não é curioso que estando a falar de homeopatia tenha sido levada a referir crenças religiosas?

    Por muito flexível e aberta (isto é, não rígida) que a racionalidade seja, não me parece racional defender como razoável ter uma crença religiosa que proíbe transfusões de sangue e depois abrir uma excepção se se tratar de um filho nosso.
    O que é racional é considerar que as pessoas, nomeadamente as crianças, têm os mesmos direitos - independentemente de quem são os pais que lhe calharam em sorte.
    Se amanhã surgir uma seita religiosa defendendo que a violação sexual dos filhos é um mandamento divino devemos deixá-los praticá-la?

    Argumentar que esta ou aquela prática de um curandeiro pode ser benéfica pois a medicina "tradicional" desconhece muitas coisas é um exemplo de uma falácia infelizmente frequente: o apelo à ignorância. Um exemplo, para comparar: A ciência não provou que não existem fantasmas. Logo, os fantasmas existem.

    Claro que devemos ter uma mente aberta. Mas não devemos esquecer-nos da sábia advertência de Carl Sagan (um homem e um cientista muito pouco rígido, como certamente sabe - e no entanto um defensor da racionalidade): mas não tão aberta que o cérebro caia pela abertura.

    Os meus melhores cumprimentos

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