''Eu tenho meus motivos pra ser exatamente do jeito que eu sou, acredite.''

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Malone Morre

LUIZ FELIPE PONDÉ
Folha de SP 26/10/09
"Malone Morre"

Num desses dias cinzentos, quando o mundo parece alimentar em você aquela certeza de que a lógica do pior é a lógica do mundo, tropecei na citação: "Antes de mais nada, quero dizer que não perdoo ninguém. Desejo a todos uma vida atroz nos fogos do gélido inferno e nas gerações execráveis que hão de vir". É Samuel Beckett em "Malone Morre".
Muita gente acha que a literatura de Beckett existe pra escrevermos teses complicadas sobre como a época em que ele viveu foi descrente porque só se pensava em ganhar dinheiro numa Europa que se afundava no capitalismo americano, pós-Segunda Guerra.
E aí passamos a xingar a burguesia e sua breguice famosa e vazia. Eu nunca xingo a burguesia porque temo que o faça por inveja. Eu acho que textos como esse servem para nos manter de olhos abertos para o risco de que o coração resvale na descrença absoluta acerca da vida fora da miséria que escorre pelos muros do mundo.
O pessimismo é uma geometria do mundo quase uma ciência exata. Não acredito que a questão de Beckett fosse apenas um desespero "político-social". Se assim fosse, ele seria um escritor menor. O desespero só merece respeito quando vai muito além do político-social e escurece o Sol.
Em meados dos anos de 1990, quando vivia em Paris por conta do meu doutorado, encontrei-me um dia com o filósofo Alain Finkielkraut num daqueles "cafés-cabeça" do Boulevard Saint German. Ele se dizia um pessimista. Discutíamos a literatura e a tendência, já forte na época, de afogar as letras no desejo brega de felicidade que hoje em dia satura o ar com seu fedor.
Para ele e também para mim, era claro que grande parte da culpa disso era da esqueerda e sua natural vocação para esperanças bobas, quando se afasta de autores mais pessimistas como Adorno. Sempre suspeitei que o pessimismo fosse um desbunde, para a incompetência ou para a preguiça.Para ele e também para mim, era claro que grande parte da culpa disso era da esquerda e sua natural vocação para esperanças bobas, quando se afasta de autores mais pessimistas como Adorno.
Seu argumento era muito parecido com o do escritor tcheco Milan Kundera: um romance deve criar dúvidas sobre o mundo. Como diz Kundera, "a burrice das pessoas vem delas terem resposta para terem resposta pra tudo". Finkielkraut comparava então romances como "Madame Bovary" e "Educação Sentimental" (ambos de Flaubert) a romances que oferecem soluções para a vida.

Se Emma Bovary nos ensina que o desejo é um companheiro destrutivo, ao mesmo tempo nos pega pela mão e nos leva a uma vida insípida onde não há desejo e da qual ela foge.
O Confronto entre as duas formas de vida, sem solução, é a força da personagem. Mesmo que Emma tenha se transformado, para muitos de nós, naquele arquétipo da mulher de 40 anos com uma taça de vinho branco nas mãos, com os seios já caídos, que aborda homens em lançamentos de livros ou em exposições, falando como o parceiro que tem, a verdadeira Emma Bovary encarna o risco que é apostar no desejo.
Mas uma vida sem desejo não vale a pena ser vivida, por isso ela é uma grande heroína: sua grandeza mora ali onde mora sua maldição. Que distância dessas bobagens que psicólogas de recursos humanos gostam de ler e recomentar para seus funcionários ou que estes conferencistas motivacionais e de liderança gostam de citar como exemplo de vida para suas platéias atordoadas pelo pânico da vida.
Por exemplo, o que dizer a uma mulher ou a um homem que vê sua energia se apagar diante do sorriso de alguém mais jovem, oferecido docemente ao seu parceiro ou parceira? Nesse momento, a insegurança sobe à boca, inundando-a de uma saliva azeda, mas com aquele insuportável sabor que a verdade tem.
A solução ridícula então vem aos olhos, e eles falam: "Posso eu competir com essa fisiologia fresca e bela?" E aí vem o socorro da má literatura. Mas, quando em casa, à noite, no espelho, você se olha, dificilmente conseguirá esconder o desejo de que ninguém jamais seja perdoado porque você é infeliz e de que todos que nasceram depois de você sejam execráveis, pela simples razão que ainda têm mais vida. Talvez Finkielkraut, Kundera e Beckett sejam excessivamente duros conosco, mortais. às vezes parece que a consciência que eles nos cobram é excessiva. Uma certa dose de inconsciência se faz necessária para enfrentar as horas.

Um comentário:

  1. Esta postagem é daquelas para serem lidas e relidas, com muita atenção. Embora fale dos nossos medos, inspira profundas reflexões.
    Lindo final de semana para ti.

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