''Eu tenho meus motivos pra ser exatamente do jeito que eu sou, acredite.''

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A oligarquia de esquerda

LUIZ FELIPE PONDÉ
A oligarquia de esquerda

O jargão "por uma sociedade mais justa" pode ser falado pelo pior dos canalhas


VOCÊ ACREDITA em justiça social? Tenho minhas dúvidas. Engasgou? Como pode alguém não crer em justiça social? Calma, já explico. Quem em sã consciência seria contra uma vida "menos ruim"? Não eu. Mas cuidado: o jargão "por uma sociedade mais justa" pode ser falado pelo pior dos canalhas. Assim como dizer "vou fazer mais escolas", dizer "sou por uma sociedade mais justa" pode ser golpe.
Aliás, que invasão de privacidade é essa propaganda política gratuita na mídia, não? O desgraçado comum, indo pro trabalho no trânsito, querendo um pouco de música pra aliviar seu dia a dia, é obrigado a ouvir a palhaçada sem graça dos candidatos. Ou o blablablá compenetrado de quem se acha sério e acredita que sou obrigado a ouvi-lo.
Mas voltando à justiça social, proponho a leitura do filósofo escocês David Hume (século 18), "An Enquiry Concerning the Principles of Morals, Section III". Cético e irônico, Hume foi um dos maiores filósofos modernos. É conhecida sua ironia para com a ideia de justiça social. Ele a comparava aos delírios dos cristãos puritanos de sua época em busca de uma vida pura. Para Hume, os defensores de um "critério racional" de justiça social eram tão fanáticos quanto os fanáticos da fé.
Sua crítica visava a possibilidade de nós termos critérios claros do que seria justo socialmente. Mas ele também duvidava de quem estabeleceria essa justiça "criteriosa" e de como se estabeleceria esse paraíso de justiça social no mundo. Se você falar em educação e saúde, é fácil, mas e quando vamos além disso no "projeto de justiça social"? Aqui é que a coisa pega.
Mas antes da pergunta "o que é justiça social?", podemos perguntar quem seriam "os paladinos da justiça social". Seria gente honesta? Ou aproveitadores do patrimônio dos outros e da "matéria bruta da infelicidade humana", ansiosos por fazer seus próprios patrimônios à custa do roubo do fruto do trabalho alheio "em nome da justiça social"? Humm...
A semelhança dos hipócritas da fé que falavam em nome da justiça divina para roubar sua alma, esses hipócritas falariam em nome da justiça social para roubar você. Ambas abstratas e inefáveis, por isso mesmo excelentes ferramentas para aproveitadores e mentirosos, as justiças divina e social seriam armas poderosas de retórica autoritária e mau-caráter.
Suspeito de que se Hume vivesse hoje entre nós, faria críticas semelhantes à oligarquia de esquerda que se apoderou da máquina do governo brasileiro manipulando uma linguagem de "justiça social": controle da mídia, das escolas, dos direitos autorais, das opiniões, da distribuição de vagas nas universidades, tudo em nome da "justiça social". Ataca-se assim, o coração da vida inteligente: o pensamento e suas formas materiais de produção e distribuição.
A tendência autoritária da política nacional espanta as almas menos cegas ou menos hipócritas. A oligarquia de esquerda associa as práticas das velhas oligarquias ao maior estelionato da história política moderna: a ideia de fazer justiça social a custa do trabalho (econômico e intelectual) alheio.
Outro filósofo britânico, Locke (século 17), chamava a atenção para o fato de que sem propriedade privada não haveria qualquer liberdade possível no mundo porque liberdade, quando arrancada de sua raiz concreta, a propriedade privada (isto é, o fruto do seu esforço pessoal e livre e que ninguém pode tomar), seria irreal.
Instalando-se num ambiente antes ocupado pela oligarquia nordestina, brutal e coronelista, e sua aliada, a chique oligarquia industrial paulista, os "paladinos da justiça social" se apoderam dos mecanismos de controle da sociedade e passam a produzir sucessores e sucessoras tirando-os da cartola, fazendo uso da mais abusiva retórica e máquina de propaganda.
Engana-se quem acha que propriedade privada seja apenas "sua casa". Não, a primeira propriedade privada que existe é invisível: sua alma, seu espírito, suas ideias. É sobre elas que a oligarquia de esquerda avança a passos largos. Em nome da "justiça social" ela silenciará todos.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A abençoada

LUIZ FELIPE PONDÉ

Tememos que nossa vida seja um atestado definitivo de nossa insignificância. E quase sempre é


ADORO O teatro. Brinquei de teatro na juventude. Esta foi minha primeira traição à medicina. Mas já tinha um filho e já era casado. É quase impossível fazer teatro e ter uma vida familiar normal no Brasil, dadas as condições em que trabalham os profissionais envolvidos com o teatro.
Isso deveria ser objeto de preocupação de todos, mas nossos oficiais da educação e da cultura se ocupam com coisas menores, como a burocracia das produtividades e das quantidades que sempre atrapalha a criação efetiva do que importa.
Aliás, a avassaladora tendência fascista de nossa época deveria ceder lugar a projetos educacionais verdadeiros. Mas não. Em lugar de projetos que eduquem os mais jovens para a condição humana, vivemos sob a tutela de burocratas que inventam todo dia modos de controlar nossas vidas, o que comemos, o que sentimos e o que pensamos, chegando ao cúmulo de querer "roubar" os direitos autorais dos outros, usurpando tudo em nome da "justiça social" -belo conceito, mas que serve a todo tipo de invasão da propriedade alheia e mau-caratismo ideológico. E vai piorar.
Que tal se levássemos o teatro a todas as escolas, tornando aulas de interpretação, dramaturgia e direção teatral parte do currículo obrigatório dos alunos?
O teatro educa nossa alma e nosso corpo, nos ensinando palavras que dão nome aos nossos espantos, medos e alegrias. Fazendo-nos debruçar sobre o humano em nós, este mesmo humano que vive acuado na banalidade das horas.
Poder educar com Shakespeare, Tchekhov, Sófocles, Nelson Rodrigues, entre outros, nos levaria a anos luz de distância da burocracia das produtividades e das quantidades que contamina as escolas, afogando-as na quase total insignificância espiritual.
Mas, sei que divago, sonhando com um mundo onde a educação não seria o terreno baldio que é. Habitado por todo tipo de utopias falsas e pequenos egos.
Recentemente assisti a um espetáculo no Teatro da Cultura Inglesa, "Piscina (sem água)", do britânico Mark Ravenhill, vencedor do 14º Cultura Inglesa Festival. Este espetáculo deveria ser levado a toda parte porque fala de algo essencial: a ambiguidade e a mediocridade humanas travestidas de bons sentimentos.
O enredo trata de um grupo de amigos artistas no qual uma delas é infinitamente superior aos outros. Fica rica e famosa com sua arte. O ódio ao sucesso da "amiga" os leva à loucura. Mas este ódio, escondido atrás de palavras doces, fala da dificuldade que temos de encarar o óbvio: nem todos nós temos talento e a maioria de nós é e sempre foi medíocre.
Voltando ao tema da educação, ao contrário do que tentam dizer muitos especialistas em educação, os mais jovens, sim, aguentam que falemos coisas assim pra eles.
Justamente porque são mais jovens, são menos infectados por esta doença mortal chamada medo da vida (que, cá entre nós, dá medo mesmo). Eles não precisam que fiquemos mentindo sobre algo que, no fundo e no silêncio de si mesmos, sabem: temos medo de ser medíocres e de que nossa vida seja um atestado definitivo de nossa insignificância. E quase sempre é.
A peça fala de arte e de amizade, mas vai muito além. A arte serve apenas como "desculpa" para falar do ressentimento da maioria contra a beleza da amiga "abençoada" (termo do próprio texto pra se referir a ela).
Fosse a "abençoada" uma engenheira numa fábrica de foguetes, o problema seria o mesmo: ressentimento e inveja por parte dos colegas medíocres. Em épocas como a nossa, na qual a sensibilidade dos ressentidos é vista como "direito à igualdade", este texto deveria ser gritado em voz alta em todos os cantos do mundo.
Ao final da peça, a "abençoada" descobre o que os "amigos" fazem pelas suas costas (não vou dizer o que eles fazem, trate de ir ver a peça). Ela grita: "Vocês são uns medíocres!" Ouvir isso é um "alívio", diz um dos medíocres.
Alívio para uma alma que derrete de medo diante do fracasso de sua vida. A fala da "abençoada" abre para seus "amigos" a chance de viver de outra forma. A sinceridade pode curar um covarde. Experimente um dia.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O prazer de ler

    
      Quando leio, sinto que sou transportada àquele mundo imaginário ou até mesmo aquele tempo histórico, sou a protagonista do enredo, a heroína, a vilã. Recentemente li a vida de Sócrates, era como se estivesse presente ao seu julgamento e até mesmo em sua morte. Leio com a alma, e como diz Rubem Alves, às vezes tenho que digerir jiló cozido com nabo cru (apesar de desgostar somente do nabo..rs), e me vejo obrigada a ler livros técnicos mas necessários à minha atualização profissional. Que bom seria se pudessemos fazer somente o que nos causa prazer. Passaria minhas tardes em cursos na Casa do Saber, outras na massagista, cinemas... mas a vida é outra... (pelo menos a minha....) então vivo (como diz meu prof. Clóvis...) A vida que vale a pena ser vivida... Aproveitando cada minuto que me sobra para gozar das coisas boas da vida...
    Espero que apreciem o texto, me fez sentir várias sensações ao lê-lo, à vocês... Rubem Alves.






     Ler pode ser uma fonte de alegria. "Pode ser". Nem sempre é. Livros são iguais a comida. Há pratos refinados, como os cailles au sarcophage, especialidade de Babette, que começam por dar prazer ao corpo e terminam por dar alegria à alma. E há as gororobas, malcozidas, empelotadas, salgadas, engorduradas, que além de produzir vômito e diarréias no corpo produzem perturbações semelhantes na alma. Assim também os livros.
     Ler é uma virtude gastronômica: requer uma educação da sensibilidade, uma arte de discriminar os gostos. O chef prova os pratos que prepara antes de servi-los. O leitor cuidadoso, de forma semelhante, "prova" um pequeno canapé do livro, antes de se entregar à leitura.
     Ler sem gostar é prova de doidice. Pelo menos, é o que Adélia Prado pensa: " A televisão está mostrando o hospício, a doida falando:'Quero voltar para casa de portão azul'. Quem fala assim não pode ser doido não. Mais doido é quem fala como o Ednaldo: 'Tou lendo um livro muito ruim, mas vou até o fim...' "
     Contra os professores de literatura que gostam de ser durões e argumentam que há muito livro duro de roer (a própria expressão está dizendo: nem é de comer, é de roer; objeto apropriado à dieta de ratos e castores) que tem de ser roído de qualquer forma (vai cair na prova, no vestibular), eu cito Borges. Ele conta que, quando foi professor de literatura na Faculdade de Buenos Aires, recusava-se a dar bibliografia a seus alunos. "Não é preciso bibliografia. Afinal Shakespeare desconhecia completamente a bibliografia shakesperiana." E lhes perguntava: "Por que vocês não estudam diretamente os textos? Se tais textos lhes agradam, ótimo. Caso contrário, não continuem, pois a leitura obrigatória é uma coisa tão absurda quanto falar em felicidade obrigatória".
      Quando minha filha começou a fazer suas primeiras incursões no campo da literatura adulta (desde muito cedo eu a introduzi aos prazeres da literatura infantil), ela teve de ler, como tarefa, o livro de Stendhal O vermelho e o negro (1830). Trata-se de um desses livros duros de roer, tradução do francês, que provocou as mais variadas convulsões estomacais-cerebrais não só em minha filha como também em seus colegas de classe, sobrando as perturbações para os pais, que tinham de vir em socorro dos filhos desamparados, obrigados a comer à força aquela terrível refeição de jiló cozido e nabo cru. Escrevi para o jovem professor (os professores jovens são terríveis, eles ainda não se desembaraçaram do cipoal de teorias aprendidas na universidade, têm sempre muita coisa a provar, e acreditam demais no que pensam saber) falando de meu amor à literatura, de meu desejo de que minha filha aprendesse o prazer da leitura, citei Borges e sugeri que havia uma infinidade de outros livros que seriam de paladar delicioso aos adolescentes, excelentes aperitivos para quem está começando. Ele me respondeu, imperturbável, que seu objetivo era desenvolver uma consciência crítica e que os alunos teriam mesmo de mastigar, engolir e digerir o jiló cozido e o nabo cru. E assim foi.
     Percebi que ele era professor. Traduzindo em nossa linguagem gastronômica: ele não era um cozinheiro; era um dieticista. É preciso que se saiba que cozinheiros e dieticistas, embora ambos envolvidos em cozinhar, são inimigos radicais. Parece que estão fazendo a mesma coisa. Mas o que um faz nada tem a ver com o que o outro faz. Os dieticistas estão interessados em alimentar de maneira científica aqueles que comem. Medem vitaminas, proteínas, carboidratos, sais minerais, colesterol. Para eles issso é a substância da refeição. Os temperos, cheiros e sabores, eles os usam como disfarces, a fim de que a coisa seja comida. Sua presença é indispensável em hospitais, e ali eles se encontram como auxiliares dos médicos e enfermeiras. Os cozinheiros, ao contrário, não estão interessados em alimentar. Estão interessados em produzir prazer e felicidade. temperos, cheiros e sabores, para eles, não são disfarces: são a própria coisa. A culinária é o kama-sutra da boca, o livro dos prazeres da boca. Cozinheiros são auxiliares dos amantes. A comida que sai das mãos do dieticista é uma coisa de necessidade. A comida que sai das mãos do cozinheiro é uma coisa de amor.
     Ele era um professor de literatura. Não era um escritor. (Eis uma dialética complicada: de um lado o escritor, aquele que escreve, que faz a coisa; do outro aquele que não faz a coisa, mas faz cicência daquilo que o outro fez: o pianista e o crítico, o filósofo e o professor de filosofia.)
     Literatura a fim de produzir consciência crítica. quem escreve não escreve a fim de. Para aquele que cria, sua obra é um fim em si mesmo. A literatura não tem objetivos além de si mesma. O prazer da leitura é seu próprio fim. Creio que foi Monet quem se queixou daqueles que perguntavam sobre o sentido de seus quadros. E disse algo parecido com: "Não pintei quadros para que tivessem sentido. Pintei quadros para que aqueles que os vissem os achassem bonitos". A literatura não tem objetivos pedagógicos. Não tem por objetivo a comunicação de ideias. Ela não é uma forma indireta de inculcar verdades que poderiam ser comunicadas de maneira direta em livros de ciência ou filosofia. Um escritor não escreve para comunicar saberes. Escreve para comunicar sabores. O escritor escreve para que o leitor tenha o prazer da leitura. O texto tem de dar provas de que me deseja, dizia Barthes. O texto me deseja? Coisa gastrônomica: o prato tem de ser uma provocação do desejo. A prova de que o texto me deseja está no prazer que ele produz em mim. Quando sou forçado a interromper a leitura, fico triste. Essa é a prova do prazer que o texto me causa. que professor se atreveria a perguntar, numa prova: "Você fica triste quando para de ler um livro?"
     É possível, nas escolar, dar informações sobre a literatura. Mas não é possível ensinar a amá-la. Paul Goodman, um controvertido pensador norte-americano, diz: "Nunca ouvi de qualquer método, escolástico ou outro qualquer, para ensinar a literatura (humanities) que não terminasse por matá-la. Parece que a sobrevivência do gosto pela literatura tem dependido de milagres aleatórios que stão ficando cada vez menos frequentes". 
     Concordo com ele. São raros raríssimos, aqueles que pelo estudo escolar das coisas relativas à literatura tenham sido levados a amar a leitura. A razão para isso é simples: tudo, em nossas escolas, está orientado no sentido de testar saberes. A questoa do amor pelo objeto - seja a geografia, a história ou as ciências - é estranha aos nossos objetivos educacionais. Não admira que, passados os vestibulares, quase tudo seja esquecido e os livros sejam esquecidos nas estantes. Às escolas e aos pais pouco importa o prazer que o aluno possa ter. O que importa é o boletim.
     Ler pode ser uma fonte de alegria. Por isso mesmo tenho dó das crianças e dos adolesscentes que, depois de muito sofrer nas aulas de gramática, análise sintática e escolas literárias, saem das escolas sem ter sido iniciados nos polimórficos gozos da leitura. é como se lhes faltassem órgãos de prazer. São castrados. Não pode, penetrar no corpo de prazer que é o livro nem sentir o prazer de ser penetrados por ele. Sabem ler, mas são analfabetos. Porque, como dizia Mário Quintana, analfabeto é precisamente aquele que, sabendo ler, não lê. 
     Rubem Alves

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Abel

LUIZ FELIPE PONDÉ
Abel

A espiritualidade mesquinha deforma a face do crente, iluminando seus caninos ocultos


CARO LEITOR, sou um pobre de espírito. Não daquele tipo que herdará o reino dos céus, como afirma Jesus no "Sermão da Montanha". Não há lugar pra gente como eu no reino dos céus. Por uma razão simples: não amo ninguém mais do que a mim mesmo. E isso é mortal. Sempre foi. Os mentirosos é que tentam dizer o contrário. Não partilho da nova "ciência do egoísmo", essa que se traduz em livros e revistas que buscam "novas formas de espiritualidade" centrada no amor próprio. Ou nessa coisa horrorosa chamada "autoestima".
Tampouco fiz de mim um budista light, desse tipo que parasita as religiões orientais com a intenção de inventar uma espiritualidade que sirva ao clássico egoísmo moderno, numa salada mista de energias hindus com Jung barato. Antes de tudo, recuso o budismo light por um mero senso do ridículo que habita essas formas mesquinhas de espiritualidade.
Com isso quero dizer que não trocaria o reino dos céus por alguma forma quântica de paraíso egoísta, ao sabor da espiritualidade de livrarias de aeroporto do tipo "O Efeito Sombra", cujo subtítulo é "Encontre o Poder Escondido na sua Verdade", dos "guias espirituais" Deepak Chopra, Debbie Ford e Marianne Williamson, perfeito para almas superficiais amantes de toda forma de espiritualidade mesquinha.
O que é uma espiritualidade mesquinha? Fácil responder essa. Espiritualidade mesquinha é, antes de tudo, uma forma de crença que deforma a face do crente, iluminando seus caninos ocultos. Aquela que sempre medita com o objetivo de nos tornar mais poderosos e bem-sucedidos. Essa praga espiritual está em toda parte porque, simplesmente, não conseguimos entender que, para salvarmos nossa vida, temos que perdê-la. Jesus tinha razão.
O principal obstáculo para se libertar do mal é o "eu". Essa peste que contamina todo ato humano. Como vampiros de Deus, queremos fazer até da "sombra" (do mal em nós) um serviçal de nosso sucesso.
Sou um pobre de espírito. Passo horas temendo o abandono, o desprezo e a indiferença. Comparando meus pequenos sucessos com os mais infelizes do que eu. Ainda bem que eles existem. Rezo para que o mundo me ame. Em meus pesadelos sempre sou o último dos amados do mundo. Quando encontro alguém melhor do que eu, perco o sono, quero destruí-lo. Sua respiração me sufoca. Sua generosidade me humilha. Seu sorriso é uma prova de que fracassei em amar o mundo.
Que o leitor apressado não pense que estou numa crise de autoestima. Que o leitor crente nessas formas de espiritualidade mesquinha não aplique psicologia barata ao que digo, tentando justificar tudo que lê com alguma hipótese acerca do cotidiano de quem escreve. Você não me conhece. Mas seguramente conhece a miséria que vos falo: quem ama alguém mais do que a si mesmo?
Não vale jogar na cara dos outros amores maternos e paternos ou filiais. Na era do "direito à felicidade do indivíduo", até a ciência já está provando (vide o diagnóstico apresentado pelo caderno Equilíbrio desta Folha no último dia 3/8) que ter filhos é um mau negócio.
Pais e mães são mais estressados do que adultos sem filhos. E é a mesma ciência que agora "descobre" a miséria dos pais, que a cria, em grande parte, com suas demandas "cientificas" de aperfeiçoamento da função parental. Ninguém mais sabe ser pai e mãe sem a palavra de uma especialista. Como sempre digo, a mania de criar um "homem" melhor vai nos destruir a todos.
Como idiota digital que sou, busco rapidamente na internet alguma nova teoria científica ou política que prove que ninguém é melhor do que ninguém. Que nos reúna num ato de mediocridade comum. Alguma nova técnica de treinamento em recursos humanos que devolva a mim minha falsa glória. Meu objetivo é fazer inveja a Deus.
Entendo Caim em seu ódio por Abel. Ao contrário das bobagens que afirma Saramago em seu livro "Caim" -críticas típicas de quem nada entende acerca da tradição bíblica porque permaneceu infantil espiritualmente-, Caim não suportou o fato de que Abel era melhor do que ele e por isso o matou. Existe algum Abel aí ao seu lado?


segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Duas Evas

LUIZ FELIPE PONDÉ
Duas Evas

Quando você, leitor, tiver dúvidas de como lidar com uma mulher, contrate uma consultora lésbica



CARO LEITOR, quando você tem dúvidas de como fazer uma mulher feliz (desculpe-me a presunção de querer saber o que seja uma mulher feliz), como você faz?
Conversa com amigos? O irmão mais velho? Usa o velho método de tentativa e erro (claro, sempre errando ao final, porque afinal trata-se da mulher e seu desejo insaciável)? Sinto lhe dizer, essas soluções já eram. Existem métodos mais modernos. Um amigo me disse que hoje há uma tendência absolutamente inovadora no mercado dos afetos.
Qual é? Você não sabe? É duro ser ultrapassado, hein? Saiba que existem formas supermodernas para lidar com esta patologia (já descrita pela neurociência) como "lazy brain". Esta patologia consiste em cérebros que recusam novas sinapses e que se alojam em caixas cranianas (igualzinha à sua), que, por sua vez, são ligadas a ossinhos que, juntos, perfazem o que você singelamente chama de "meu pescoço".
O tratamento consiste basicamente em fazer primeiro uns 15 minutos de ioga, depois, mais 15 minutos de meditação transcendental e, por último, um curso de 15 minutos de clown mais todo tipo de inovação que a neurociência lançar naquele dia específico em que você se sentir ultrapassado.
E a nossa inovação de hoje? Quando você, leitor ultrapassado, tiver dúvidas de como lidar com uma mulher, contrate uma consultora lésbica. Esta consultoria deve ter sido inventada em um desses países superavançados onde todo mundo é livre, feliz, recicla lixo e anda de bike. Esses lugares onde existem milhares de pessoas com "consciência". Não confie seus segredos a pessoas com "consciência".
Segundo a nova tendência, a lésbica é, na realidade, quem melhor entende de mulher. Bem, ela é mulher. A lógica é bem lógica, afinal. Quem melhor sabe onde um corpo de mulher sente prazer do que alguém que tem um corpo de mulher? Quem melhor "sabe o que uma mulher quer na vida" (expressão tão metafísica quanto "salto quântico") do que alguém que "quer a mesma coisa na vida que a mulher, porque é mulher"? Será que a lésbica e a hétero querem a mesma coisa?
Calma. Beba um gole de água. Álcool não, porque ainda é cedo. Se não morrer de medo de câncer, fume um. Pense o seguinte. O mercado de "filme adulto" sempre colocou relações sexuais entre mulheres em filmes para heterossexuais, certo? E por quê? Porque o sonho de todo cara é sair com duas gatas e vê-las em ação. E qual a razão disso? Ninguém sabe.
Mistérios metafísicos... Deus existe? Minha mãe me ama? Serei feliz sendo honesto? Todo cara quer duas gatas... Who knows why? Deus está trabalhando neste exato momento, com sua equipe, tentando entender porque Adão exigiu duas Evas pra ele.
Sei que a esta altura a turma das chatas, que só gosta de eunucos, está gritando: "Isso é a prova de que o mundo é patriarcal e que o corpo da mulher é visto como objeto de consumo". Mas hoje estou sem saco de conversar com elas, que fiquem gritando. Hoje estou mais preocupado com as inovações no mercado dos afetos e com o que as lésbicas têm a nos ensinar.
Finalmente os héteros perceberam que os homos são o futuro? Os caras "entenderam" que lésbicas sabem dar mais prazer, carinho e compreensão às mulheres do que eles? Seria a vez das mulheres contratarem gays para explicar o que homens gostam na cama e na vida? No lo creo.
Ou isso tudo nada mais é do que o velho impulso cafajeste que existe em todo homem e que levou Woody Allen a colocar Scarlett Johansson beijando Penélope Cruz em "Vicky Cristina Barcelona"? Aliás, viu Deus? Aprenda com o ateu Woody Allen. Era isso que Adão tinha em mente, seu tolinho.
E você, cara Eva, você concorda que lésbicas "sabem melhor" o que você quer? Seu amigo gay lhe dá uma ideia melhor do que um homem de fato quer?
Ou será que, para além do sonho da Scarlett e da Penélope em ação, o homem está mesmo é perdido nessa era boring do "acesso" e da ciência na qual somos todos obrigados a "saber tudo" o tempo todo agora e "respeitarmos o espaço do outro"? E por isso, ele já não sabe o que fazer para saber o impossível: o que a mulher, afinal, quer?

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

A gula republicana

LUIZ FELIPE PONDÉ
A gula republicana

No século 20, o novo totalitarismo está associado à inflação da ideia de "bem público"


ELA PROVAVELMENTE estudou serviço social ou direito. Ele, psicologia ou pedagogia ou mesmo ciências sociais. Ambos têm certeza de que devem "melhorar o mundo" através da criação de leis ou políticas públicas. Querem criar o cidadão ideal. O que é isso? Sei lá, alguém que vá ao banheiro com consciência social?
Conhece alguém assim? Eles estão em toda parte, como uma praga querendo domar a vida a qualquer custo. E vão mandar em você logo.
Não se trata de uma questão apenas para alguém que tem simpatias por formas de vida menos controlada, como eu. Alguém que fuma charutos cubanos e acha que terapia de shopping faz bem mesmo (quem diz o contrário é mentiroso ou não tem dinheiro). Eu sei que o efeito dessas terapias passa rápido, mas, afinal, o que passa rápido mesmo é a vida.
O controle legal da vida, grosso modo, separa dois modos de ver a política desde o século 18. Um primeiro modo, "mais" britânico, tende a ser mais cauteloso em relação às formas políticas e legais de controle da vida moral (hábitos e costumes). Outro, mais descendente da revolução francesa, tende a babar de tesão só em pensar no controle dos hábitos e dos costumes, devastando a diversidade moral do mundo, como na proibição do véu islâmico na França.
No Brasil, temos um déficit sério em nossa formação. Quase todo mundo só conhece os franceses utópicos ou os alemães hegelianos (todos jacobinos de espírito), o que empobrece o debate público. Essa pobreza não se limita ao senso comum, mas, desgraçadamente, atinge a própria academia que repete cegamente a liturgia da gula republicana: controlemos a vida em nome de uma vida perfeita.
Mas o que é a gula republicana? A democracia republicana tende a devorar o espaço moral. Ela o faz porque vê o espaço moral como matéria da "coisa pública" e, por isso, assume os hábitos e costumes das pessoas como devendo ser, por natureza, objeto sob seu controle. É marca da democracia republicana o "poder minutal" (dizia Tocqueville, francês que pensava como britânico): sua natureza é buscar controlar os detalhes da vida.
Quais detalhes? Legislar afetos, hábitos, sentidos, sexo, relações parentais íntimas, comida, escolas, memória, nada escapa da gula republicana e seu clero. Leis que querem fazer de pais e filhos delatores uns dos outros, de amantes representantes do "sindicato dos gêneros". Erra quem ainda associa o fenômeno totalitário às formas clássicas do fascismo do século 20, o novo totalitarismo está associado à inflação da ideia de "bem público".
Se você der uma palmadinha no filho, o Estado te pega! Quem vai denunciar? Que tal ensinar às crianças nas escolas alguns métodos de denúncia? A família já vai mal mesmo.
Onde estaria a fronteira desta inflação da noção de "bem público"? Vamos ver... ah, já sei: não existe fronteira! Quer ver? Imagine só: está proibido rezar antes de jantar em nome da liberdade religiosa das crianças, está proibido contar historinhas paras as crianças sem antes uma análise prévia por especialistas da questão da violência de gênero, pais que não tiverem o certificado de "alimentação zero gordura e zero açúcar" pagarão multa.
Dirá o leitor ingênuo: mas a opinião pública é contra a lei das palmadinhas. Sinto muito: a opinião pública é uma "vadia". Hoje ela diz "não", amanhã ela dirá "sim", tudo depende do que for repetido cem vezes. A democracia sofre com esse mal: sua natureza tende fatalmente para a mentira, para a retórica, para a superficialidade.
Para preservar a democracia de seu viés tirânico (a gula republicana), temos que "defender" a família e suas mazelas em seu espaço (in)feliz, deixar que o manto sombrio da incerteza cubra parte de nosso cotidiano porque, o que preserva a liberdade, não é o consenso acerca do que sejam os "bens morais", mas a sombra que os cerca.
Para preservarmos esta "sombra", é necessário opções à tendência hegemônica no Brasil hoje, que é autoritária. Veja as "opções presidenciáveis". Todos são do clero jacobino de alguma forma. Todos veem a política como "curadora" das almas. Socorro!