''Eu tenho meus motivos pra ser exatamente do jeito que eu sou, acredite.''

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Branca de Neve azeda
Luiz Felipe Pondé

Fazer a cabeça das crianças sempre foi um dos pratos prediletos do fascismo. Agora, nem a Branca de Neve escapa, coitada, do ódio dos fascistas. O conjunto de "estudos" que se dedica a fazer a cabeça das crianças é parte do que podemos chamar de "oppression studies".
Você não sabe o que é?
"Oppression studies" é uma expressão usada pelo jornalista americano Billy O'Reilly, da Fox News, para se referir às "ciências humanas engajadas no controle das mentes". Explico.
Reprovou um aluno? Opressão. É preguiçoso? Não, a sociedade te oprimiu e fez você ficar assim. Um ladrão te assaltou? Ele é o oprimido, você o opressor. Aliás, sobre isso, vale dizer que, com a violência em São Paulo, devemos reescrever a famosa frase do Che: "Hay que enfiar la faca en la cavera, pero sin perder la ternura jamás".
A frase dele, assinatura de camisetas revolucionárias, é: "Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás". Essa camiseta é a verdadeira arma contra gente como ele. Os americanos deveriam afogar o Irã em Coca-Colas, Big Macs e pílulas anticoncepcionais para as iranianas transarem adoidado com seus amantes.
Convidou uma colega de trabalho para jantar? Opressão! Você é um opressor por excelência, deveria ter vergonha disso. Não é um amante espiritual do Obama? Opressor! Come picanha? Opressor! Não acha que a África é pobre por culpa sua? Opressor! Suspeita de que o sistema de cotas vai destruir a universidade pública criando um novo espaço de corrupção via reserva tribal de mercado e compra de diplomas de escolas públicas? Se você suspeita disso, é um opressor! Acha que uma pessoa deve ser julgada pelos seus méritos e não pelo que o tataravô do vizinho fez? Opressor! Anda de carro? Opressor! Ganhou dinheiro porque trabalha mais do que os outros? Opressor!
Os "oppression studies" sonham em fazer leis. Por exemplo, recentemente, um comitê de gênero (isto é, o povo que diz que sexo não existe e que tudo é uma "construção social", claro, opressora) desses países em que o "mundo é perfeito" teve uma nova ideia.
Esses caras (ou seriam car@s?) querem proibir qualquer propaganda ou programação infantil que reproduza imagens de mulher sendo mulher e homem sendo homem. Não entendeu? É meio confuso mesmo. Vamos lá.
Imagine uma propaganda na qual existe uma família. Segundo os especialistas em "oppression studies", para a marca não ser opressora, a família não pode ser heterossexual, porque se assim o for, o "espelho social" (a imagem que a mídia reproduz de algo) fará os não heterossexuais se sentirem oprimidos.
O problema aqui não é que as pessoas devem ser isso ou aquilo (melhor esclarecer, se não eu viro objeto de estudo dos "oppression studies"), mas sim por qual razão esses cem car@s (não são muito mais do que isso), que não têm o que fazer na vida a não ser se meter na vida, na família e na escola dos outros, têm o direito de dizer o que meus filhos ou os seus devem ver na TV? Até quando vamos aturar essa invasão da vida alheia em nome dos "oppression studies"?
Contos de fadas como Branca de Neve, Cinderela e Gata Borralheira são grandes objetos de atenção dos "oppression studies". Claro, as três são oprimidas, por isso gostam dos príncipes. Se fossem livres, a Branca de Neve pegaria a Cinderela. Humm... não seria uma má ideia....
Veja o lixo que ficou a releitura da Branca de Neve no filme que tem a atriz da série "Crepúsculo", a bela Kristen Stewart, como a Branca de Neve. Coitada...
A coitada tem que terminar sozinha para sustentar sua posição de rainha "empoderada", apesar de amar o caçador (passo essencial para libertar nossa heroína da opressão de amar alguém da nobreza, o que seria ainda mais opressor).
Os "oppression studies", na sua face feminista, revelam aqui o ridículo de sua intenção: fazer de toda mulher uma mulher sem homem porque ela mesma é o homem. Todo mundo sabe que isto é a prova mais banal da chamada inveja do falo da qual falam os freudianos. Fizeram da pobre Branca de Neve uma futura rainha velha e sem homem. Ficará azeda como todas que envelhecem assim.

sábado, 20 de outubro de 2012


 

Elvis é meu ídolo maior desde a infância, aprendi a ama-lo com meu irmão Wilson, que usava o cabelo com o mesmo corte e as costeletas, dizia que quando Elvis viesse ao Brasil iríamos vê-lo, pena que Elvis morreu antes disso, e meu irmão antes que viesse o show e a exposição. Posto aqui essa homenagem póstuma a esse grande homem, que mobilizou o mundo mesmo sem conhecê-lo.

 
 
 
 
 
 
 
Um Ícone do Nosso Tempo

     A letra de “Long Black Limousine”, do álbum  From Elvin in Memphis, fala de uma pessoa que sai de sua cidadezinha, vai  para a cidade grande e jura retornar em um carrão exótico. A limusine do título se torna um carro funerário. Alguns podem ver a canção como uma irônica leitura autobiográfica ou então uma das muitas contradições de Elvis Presley e de seu próprio mito.

     Elvis foi um dos maiores norte-americanos de todos os tempos, e orgulhosos disso. Saiu de suas modestas fronteiras do sul dos Estados Unidos pra conseguir um apelo universal – ele é uma das poucas pessoas na história recente que são conhecidas apenas pelo primeiro nome. Aproximar-se da arte de Elvis é como mirar um espelho. Você pode olhar para ele e escolhe seu Elvis favorito: o jovem rebelde revolucionário dos anos 50; o gentil galã de cinema da década de 60; ou o mega astro cujos trajes se assemelhavam a uniformes de um super herói do outro mundo, que entrou a década de 70 novamente no topo do mundo para morrer sete anos depois.

     A presença de Elvis ainda é inspiradora – é o exemplo definitivo da auto-invenção e da auto-realização. Você pode nascer na miséria, conquistar o mundo e tornar-se uma entidade maior do que a vida. Teses de sociologia furadas já foram escritas, mas a complexidade do homem ainda desafia palavras. Quando o assunto é Elvis Presley, o mais básico é ainda o que conta: as canções e voz. Apesar de ser ainda formalmente conhecido como “Rei do Rock” – esta palavra de quatro letras tão usada e abusada nestes tempos -, o domínio de Elvis sobre o idioma musical de seu país era imenso. Ele é uma porteira para descobrir o blues, o country, o gospel, o rockabilly e o soul. Por mais previsíveis que meia dúzias dos hits possam soar, a música de Elvis é um oceano ainda pouco explorado. A voz, flexível ao extremo, tinha tudo: poder, alcance, emoção, sutileza acima de tudo, credibilidade. Em 1971, ao aceitar um prêmio que o considerava um dos dez mais destacados jovens de seu país, o astro citou “Without a Song”, de Irving Berlin: “Se, a canção, o homem não tem amigos, sem uma canção o dia não termina. Então, eu vou continuar cantando a minha canção”. E de nossa parte, continuaremos a escutar as canções dele.

 

                                    By Paulo Cavalcante

                                     Editor da Revista Rolling Stone

    

 

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

"Bonequinha de Luxo"


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LUIZ FELIPE PONDÉ
Não sou daqueles que acha o passado melhor que o presente, mas no cinema americano, às vezes, temo que isso seja verdade. Salvo algumas exceções, claro, como Clint Eastwood ou Debra Granik (autora do grandioso "Inverno da Alma", no original, "Winter's Bone", título maravilhoso), todo mundo só quer fazer filmes para gente com idade mental de cinco anos ou ensinar as pessoas a serem melhores.
Todo artista que quer fazer o mundo melhor com sua arte é mau artista ou mau-caráter. Oscar Wilde suspeitava da poesia sincera e eu, da arte engajada. "Arte do bem" é arte menor e chata.
Revi o maravilhoso "Bonequinha de Luxo", de Blake Edwards, de 1961, com Audrey Hepburn e George Peppard. A última cena, ela arrependida, procurando o gato que abandonara num beco sujo, e, logo depois, os dois se beijando sob uma forte chuva, misturando as lágrimas às gotas que caem do céu, é um louvor ao amor romântico, como redenção de uma vida vazia em meio às ambições de sucesso e reconhecimento social.
Peppard salva a bonequinha de luxo (Hepburn) de uma vida miserável em meio a ansiedade por status e por luxo. A miséria moral é sempre humana, demasiado humana. A grandeza humana, por sua vez, só é verdadeiramente visível diante dessa miséria.
"Bonequinha de Luxo" foge da fórmula idiota dos filmes românticos da atualidade que seguem a chave de sempre ver o homem como um ser insensível, estúpido, mentiroso e incapaz de amar de verdade.
Degrada-se a imagem do homem fazendo dele um macaco inútil. Essa imagem do homem é tão falsa quanto a de que homens gostam de mulheres burras. Mulheres burras, apenas e unicamente quando bonitas, servem para relações curtas, depois cansam. Nem só de pernas vive o homem, mas também do verbo feminino.
O roteiro dessas bobagens é assim: ele se declara, ela se faz de difícil, mas acaba dizendo que o ama, ele se desespera porque ela vai descobrir que ele mentiu em algum momento, ela descobre inevitavelmente sua mentira, o repele sob o signo de que mulheres não suportam mentiras (em si uma mentira) e, finalmente, ele confessa que não presta e ela o aceita de volta sob a promessa dele de que jamais mentirá "again".
Grande exemplo de romantismo para idiotas. O problema com estas fórmulas é que elas humilham o ser humano ao invés de erguê-lo, porque nós só temos alguma dignidade depois de mergulhar no abismo. O abismo (o sofrimento dos heróis) nestes filmes é de brincadeirinha, como tudo mais hoje em dia quando se fala de moral.
Vivemos numa época tomada pela fúria de um "bem idiota". O ser humano só revela o que há de melhor nele quando é esmagado.
A "bonequinha" é uma candidata a amante de luxo nos anos 1960 em Nova York, ansiosa por ser amada, mas no fundo morrendo de medo de amar. Ele, um escritor jovem e desconhecido, é um gigolô sustentado por uma milionária entediada. Portanto, ambos são a mesma coisa. Vivem em festas cabeças de riquinhos que mostram o início dos anos 1960, regadas a muito álcool.
O filme mostra como os anos 1960 foram em grande parte um engodo: supostamente liberal e contra o sistema, mas em grande parte apenas uma festa do cabide em que os liberados fugiam de si mesmos o tempo todo. A vida é quase sempre insuportável, e os anos 1960 inventaram uma forma nova de mentir sobre isso: a revolução sexual.
Ele a salva quando a faz perder o medo de investir no amor que um sente pelo outro. A cena do táxi, segundos depois de ela abandonar seu gato na sarjeta em meio a tempestade, é o ápice da tensão dramática: ela joga seu gato na sarjeta como fazia consigo mesma. Desafiada pela fala dele "você é uma covarde", ela rompe o círculo da futilidade afetiva.


A diferença entre este final feliz e o dos filmes atuais é que "nunca mais minta pra mim" é papo de bobo, enquanto que ter medo de amar é coisa de gente grande que sabe o risco que é o amor.
Tristes tempos os nossos nos quais todo mundo dá gargalhada numa festa contínua, fingindo que sexo é "a" questão, quando o verdadeiro desafio é outro.
Diante do amor, sexo sem amor é para iniciantes.


segunda-feira, 18 de junho de 2012







Sempre comunguei com este pensamento, essa nova invenção Bulling... imagino que os que tenham mais de 40 anos também sofreram qualquer tipo de "perseguição" na escola e não tenham ficado traumatizados, hoje em dia tudo é motivo para reclamações, penso que se a educação em casa fosse mais efetiva, e os pais tivessem mais controle "sobre" seus filhos, o que assistem, com quem saem, onde navegam na internet esses casos diminuiriam sensivelmente.





A paranoia bullying
O Estado invade o espaço institucional do cotidiano escolar com sua vocação de controle absoluto da vida
Entro em sala de aula várias vezes na semana. Daí vem muito do que penso acerca dos modismos perniciosos que assolam o mundo da educação.
E daí também vem o fato de que, apesar de ser pessimista (nada tem de chique no pessimismo, apenas para quem não o conhece por dentro e o confunde com um estilo melancólico de se vestir), não desisto da vida e vou morar no bosque de "Walden" (ou algo semelhante), como fez o filósofo americano Thoreau no século 19.
Hoje vou comentar um caso específico de moda que em breve provavelmente vai destruir qualquer liberdade e espontaneidade na sala de aula: a "paranoia bullying".
Se atentarmos para o que o Ministério Público prepara como controle da vida escolar "interna", veremos, mais uma vez, a face do totalitarismo via hiperatividade do poder jurídico.
Ao invés de atacar o que deve ser atacado (o lixo que é a escola no Brasil, porque o Estado arrecada impostos como um dragão faminto, mas não dá nada em troca), o Estado e seu braço armado, o governo socialista que temos há décadas, que adora papos-furados como cotas raciais e bijuterias semelhantes, invade o espaço institucional do cotidiano escolar com sua vocação maior e eterna: o controle absoluto da vida nos seus detalhes mais íntimos.
E ninguém parece enxergar isso, muito menos a pedagogia e sua vocação, nos últimos anos, para livros bobos da moda e palestrantes de autoajuda.
Quando ouço alguma "autoridade pública em bullying", sinto que estou diante de um inquisidor, que, como todos, sempre se acha representantes do "bem".
Seria de bom uso dar aulas de história dos perfis psicológicos dos grandes inquisidores, como Torquemada e Bernard de Gui, para essas "autoridades públicas" em invasão da vida íntima das pessoas e das instituições. Eles descobririam sua ascendência direta do grande inquisidor de Dostoiévski ("Irmãos Karamazov").
Em breve, a melhor solução para o professor será a indiferença preventiva para com os alunos. Melhor uma aula burocrática e avaliações burocráticas do tipo "múltipla escolha" ou "diga se é falso ou verdadeiro", mesmo nas universidades, porque assim o aluno não poderá acusar o professor de "desumanidade" ao reprová-lo, ou pior, acusá-lo de bullying porque desconsiderou sua "cultura de ignorante", mas que "merece respeito assim como Shakespeare".
Os "recursos" contra reprovação logo se transformarão em processos contra "bullying intelectual". E os fascistas do controle jurídico da vida terão orgasmos.
Atitudes como estas destroem a autoridade da instituição, dos profissionais que nela trabalham e transformam todos em reféns da "máquina jurídica". O resultado é que família e escola perdem autonomia. O que este novo coronelismo não entende é que existe um risco inerente ao convívio escolar e que as autoridades imediatas, professores e coordenadores é que devem agir, e não polícia ou juízes.
Na minha vida como aluno em universidade tive duas experiências com dois professores que hoje poderiam ser enquadradas facilmente neste papinho de "tratamento desumano", mas que foram essenciais na minha vida profissional e pessoal.
A primeira, quando era um aluno da medicina na Universidade Federal da Bahia, ocorreu no dia em que perguntei a um professor como um paciente terminal via o fato de que ele ia em direção ao nada. Ele disse: "O senhor está na aula errada, deveria estar na aula de filosofia".
Isso, numa faculdade de medicina, significa mais ou menos que você não tem a natureza forte o bastante para encarar a vida como ela é.
A segunda, já na faculdade de filosofia da USP, aconteceu quando um professor me deu zero e disse para procurá-lo. Ao me ver, no meio da secretaria e na frente de vários funcionários e alunos, ele disparou: "Suas ideias são ótimas, seu português é um lixo".
Em vez de preparar a polícia para prender bandidos que assaltam casas e restaurantes aos montes, o governo prefere brincar com essas bijuterias, fingindo que cumpre sua função de garantir a segurança pública. Será que isso é medo de enfrentar os criminosos de verdade?
ponde.folha@uol.com.br

segunda-feira, 19 de março de 2012

A síndrome de Schmidt


     Apesar das modas, as mulheres temem a subjetividade masculina como o diabo teme a cruz.
     Não, não se trata de uma doença nova, caro leitor. Apenas de um filme cujo título é "As Confissões de Schmidt", do diretor Alexander Payne, o mesmo de "Os Descendentes", que concorreu ao Oscar neste ano, mas muito melhor do que esse.




     Para começar, Schmidt é Jack Nicholson, o que já garante metade do filme. Mas o filme vai muito
além desse grande ator.
     Síndrome de Schmidt, nome que eu inventei, descreve o quadro de total melancolia em que se encontra o personagem central, um homem de 60 anos, após a aposentadoria e morte repentina da sua mulher. Mas qual é o diagnóstico diferencial com relação a outras formas de melancolia? Vejamos.
     O filme abre com um discurso de um colega em sua homenagem, quando Schmidt se aposenta da companhia de seguros em que trabalhou a vida inteira (no caso, companhia de seguros carrega todo o peso de viver para ter uma vida segura).
     Logo após a morte da sua mulher, ele descobrirá que ela fora amante do colega que discursou em sua homenagem em sua cerimônia de despedida da "firma". A cena da descoberta é feita com requintes de crueldade, porque Schmidt está imerso nas roupas da mulher morta, buscando sentir seu "doce aroma" e assim matar a saudade que sente dela.
     Schmidt tem uma filha que casará com um sujeito horroroso, de uma família brega que se julga especial: você conhece coisa pior do que festa de Natal em família? Sim: uma festa de Natal em família em que os presentes são frutos da criatividade ridícula dessa família, como no caso da família do genro de Schmidt.
     Schmidt fazia xixi sentado como menina porque sua mulher o proibia de fazer xixi como menino, a fim de não sujar o banheiro.
     Esse é sintoma diferencial da síndrome de Schmidt: esmagar-se (mesmo sua fisiologia) para deixar tudo em seu lugar, sem conflitos, amar a paz e o bom convívio em detrimento de si mesmo. No caso específico, não há "questão de gênero" (já que banheiros estão na moda nesse assunto, vale salientar que aqui não é o caso).
     Primeiro porque eu não acredito em questões de gênero, só em questões de sexo. Depois, porque não se trata de falarmos em homens vítimas da opressão feminina (ainda que se trate de alguma "opressão" nesse caso, já que, afinal, sua mulher o obrigava a fazer xixi como menina e o traiu), mas sim de falarmos de alguém que descobre que sua vida foi e é vazia, apesar de ter sido um pai e esposo dedicado, e não um desses canalhas que saem com mulheres fáceis por aí.
     A síndrome de Schmidt pode e afeta também mulheres, portanto não é uma questão do sexo masculino. Mas no filme é uma questão masculina (o sexo masculino "suja banheiros") e o é antes de tudo porque, como se sabe, homens trabalham, às vezes até brincam com os filhos, mas são as mulheres que detêm o monopólio da subjetividade e da sensibilidade.
     Mulheres "conhecem a si mesmas", homens não. Schmidt é uma caricatura do homem que acreditou que, cumprindo seu papel, estaria a salvo da devastação da falta de sentido da vida e do amor. Apesar das modinhas, as mulheres temem a subjetividade masculina como o diabo teme a cruz.
     Homens não sabem falar de si mesmos. E, no fundo, é melhor que continuem assim (pensam as mulheres e os filhos): vivendo como Schmidt, no silêncio da função paterna e marital. Isso muitas vezes é objeto de piadas nas quais homens são comparados a carroças, enquanto mulheres são comparadas a grandes jatos.
     Na realidade, a vida comum das famílias supõe que os homens continuem a trabalhar sem crises existenciais; qualquer coisa que se diga ao contrário disso é mais uma mentira da moda.
     Isso não significa que não existam exceções, mas essas são apenas exceções. Homens com crises existenciais ficam sozinhos.
     No caso de Schmidt, tudo que sua filha quer é seu cheque, e não sua presença. O filme é bom o bastante para mostrar que talvez nessas famílias "normais" não haja mesmo possibilidade de grandes relações entre pais e filhos, muito menos entre pai e filhos.
      Talvez esse venha a ser um dos debates do século 21: o que fazer quando os homens começarem a falar?


ponde.folha@uol.com.br

terça-feira, 6 de março de 2012

Conhece-te a ti mesmo





Decidi mudar. Não serei mais aquela pessoa que acha que as pessoas não mudam e que não há história, mas sim um eterno retorno do mesmo. Nietzsche nunca mais, só Rousseau e seu estado de natureza angelical.
Acredito agora nas primaveras que cortam o mundo. Fui à livraria mais próxima, ou melhor, ao iPad mais próximo, e comprei um livro que me indicaram: "Dez passos para ser um novo Pondé", autoria de um certo sábio chinês que talvez seja um neto de coreano nascido na Califórnia de pais porto-riquenhos.
O primeiro passo é aprender a respirar. Sou dono da minha respiração agora. Em seguida, alimentação. Nunca mais carne vermelha. De início, ainda frango e peixe, mas em breve pretendo me tornar um amante das rúculas e alfaces, mas sempre pedindo perdão por precisar tirá-las de sua vida doce e promissora fazendo fotossíntese. Coca-Cola, nem pensar. Além do mais, é americana! Vinho, só natural.
Um segredo: continuarei a ir aos EUA porque um tênis lá custa cinco dólares! Irei escondido e voltarei com dez malas. Mas, temos ou não direito a ter tênis baratos? Acho uma falta de respeito proibir as pessoas de comprar tênis e jogos eletrônicos baratos em Miami.
Amarei a África. Abraçarei todas as ONGs do mundo. Direi às pessoas que elas são lindas e que o mundo faz parte de uma confederação cósmica. Os maias foram o povo mais avançado da história e decidi frequentar escolas aborígenes para aprender seu complexo modo de criar sociedades mais justas.
Religião: nunca mais essa coisa pesada de judaísmo e cristianismo, religiões que nos estragam com sua moral "imposta". Candomblé também não. Claro, como é religião africana, seria aprovada pelo meu novo eu, mas em alguns terreiros baixam pombagiras, e elas foram prostitutas e adúlteras, e não quero nem chegar perto disso! Aliás, decidi que essas coisas não existem.
Minha nova religião será uma forma de budismo light, aquele tipo que cultua a energia do universo. Sei que existem outros tipos, mas aqueles são autoritários. Toco as plantas com mais cuidado e percebi que elas são mais sábias do que Freud. Claro, comprei uma estatueta de um golfinho e joguei fora aquela esfinge do Édipo horrorosa que minha irmã me deu em Londres.
Nunca mais tragédia grega, agora só revistas que nos ensinam como o mundo pode ser melhor se arrumarmos nossos sofás de forma mais harmônica com as estrelas. Contratei uma mestra em decoração oriental. Ela é uma mulher supermagra e equilibrada. Imagine que curou um câncer em seu gato com reiki.
Direi para todo mundo que não gosto de dinheiro e que gosto das pessoas pelo que elas são e não pelo que elas têm. Perguntarei aos artistas com consciência social o que posso dizer e fazer.
Vendi meu horroroso carro inglês. Estou aprendendo a andar de bike (já sabia andar de bicicleta, mas bike é outra vibe). Ainda que tenha que atravessar as ladeiras das Perdizes para ir trabalhar (pena que ainda tenha que fazer parte desse mundo terrível de pessoas que trocam sua dignidade por dinheiro), já me explicaram que cada pedalada evita duas moléculas de gás carbônico, o que faz de mim uma pessoa com pegada de carbono sustentável.
Sexo, agora, só verde. Se provarem que esperma polui o mundo, evitarei o orgasmo, assim como na Idade Média dizem que mulheres santas evitavam gozar para serem puras aos olhos de Deus. Enfim, sinto-me leve com meu novo eu. Provavelmente, serei mais amado, e isso é que conta, não? Acredito, agora, num mundo melhor.
De repente, acordei. Sentei na cama. Ao lado, minha mulher dormia, com seu corpo de pecadora.
Fui até a biblioteca e vi os livros de Nietzsche, Freud, Pascal, Dostoiévski, Cioran, Bernanos, Roth, Camus, Nelson Rodrigues me olhando com olhos de profetas.
Os dedos indicadores em riste apontavam para mim.
Ao lado de minha estatueta da esfinge de Édipo, lia-se: "Conhece-te a ti mesmo". Voltara a ser eu mesmo. Esse miserável escravo das moiras, de felicidade complicada, doçura rara, boca seca e olhos vermelhos. Reconheci-me: sou o mesmo pecador de sempre, sem esperança.
ponde.folha@uol.com.br

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A polícia indefesa

      O policial é tão cidadão quanto nós, mas temos a lembrança da ditadura militar e algumas pessoas associam a palavra (militar-ditadura) como sinônimo. 
Como diziam os eternosTitãs: Polícia! Para quem precisa (quem eles acham suspeito) . Polícia! Para quem precisa de polícia!




Qual o "produto" da polícia? Liberdade dentro da lei, segurança, enfim, a civilização
A POLÍCIA é uma das classes que sofrem maior injustiça por parte da sociedade. Lançamos sobre ela a suspeita de ser um parente próximo dos bandidos. Isso é tão errado quanto julgar negros inferiores pela cor ou gays doentes pela sua orientação sexual.
Não, não estou negando todo tipo de mazela que afeta a polícia nem fazendo apologia da repressão como pensará o caro inteligentinho de plantão. Aliás, proponho que hoje ele vá brincar no parque, leve preferivelmente um livro do fanático Foucault para a caixa de areia.
Partilho do mal-estar típico quando na presença de policiais devido ao monopólio legítimo da violência que eles possuem. Um sentimento de opressão marca nossa relação com a polícia. Mas aqui devemos ir além do senso comum.
Acompanhamos a agonia da Bahia e sua greve da Polícia Militar, que corre o risco de se alastrar por outros Estados. Sem dúvida, o governador da Bahia tem razão ao dizer que a liderança do movimento se excedeu. A polícia não pode agir dessa forma (fazer reféns, fechar o centro administrativo).
A lei diz que a PM é serviço público militar e, por isso, não pode fazer greve. O que está corretíssimo. Mas não vejo ninguém da "inteligência" ou dos setores organizados da sociedade civil se perguntar por que se reclama tanto dos maus salários dos professores (o que também é verdade) e não se reclama da mesma forma veemente dos maus salários da polícia. É como se tacitamente considerássemos a polícia menos "cidadã" do que nós outros.
Quando tem algum problema como esse da greve na Bahia, fala-se "mas o problema é que a polícia ganha mal", mas não vejo nenhum movimento de "repúdio" ao descaso com o qual se trata a classe policial entre nós. Sempre tem alguém para defender drogados, bandidos e invasores da terra alheia, mas não aparece ninguém (nem os artistas da Bahia tampouco) para defender a polícia dos maus-tratos que recebe da sociedade.
A polícia é uma função tão nobre quanto médico e professor. Policial tem mulher, marido, filho, adoece como você e eu.
Não há sociedade civilizada sem a polícia. Ela guarda o sono, mantém a liberdade, assegura a Justiça dentro da lei, sustenta a democracia. Ignorante é todo aquele que pensa que a polícia seja inimiga da democracia.
Na realidade, ela pode ser mais amiga da democracia do que muita gente que diz amar a democracia, mas adora uma quebradeira e uma violência demagógica.
Sei bem que os inteligentinhos que não foram brincar no parque (são uns desobedientes) vão dizer que estou fazendo uma imagem idealizada da polícia.
Não estou. Estou apenas dando uma explicação da função social da polícia na manutenção da democracia e da civilização.
Pena que as ciências humanas não se ocupem da polícia como objeto do "bem". Pelo contrário, reafirmam a ignorância e o preconceito que temos contra os policiais relacionando-a apenas com "aparelhos repressivos" e não com "aparelhos constitutivos" do convívio civilizado socialmente sustentável.
Há sim corrupção, mas a corrupção, além de ser um dado da natureza humana, é também fruto dos maus salários e do descaso social com relação à polícia, além da proximidade física e psicológica com o crime.
Se a polícia se corrompe (privatiza sua função de manutenção da ordem via "caixinhas") e professores, não, não é porque professores são incorruptíveis, mas simplesmente porque o "produto" que a polícia entrega para a sociedade é mais concretamente e imediatamente urgente do que a educação.
Com isso não estou dizendo que a educação, minha área primeira de atuação, não seja urgente, mas a falta dela demora mais a ser sentida do que a da polícia, daí "paga-se caixinha para o policial", do contrário roubam sua padaria, sua loja, sua casa, sua escola, seu filho, sua mulher, sua vida.
Qual o "produto" da polícia? De novo: liberdade dentro da lei, segurança, a possibilidade de você andar na rua, trabalhar, ir ao cinema, jantar fora, dormir, não ser morto, viver em democracia, enfim, a civilização.
Defendem-se drogado, bandido, criminoso. É hora de cuidarmos da nossa polícia.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A dor na face



      Muitas vezes apenas gostaríamos de dizer "não". Coisa difícil dizer "não", porque o "sim" é civilizado na sua condição de hipocrisia necessária para a vida em grupo.
      Não dizer bom-dia, não dizer que gostou, não dizer que quer ir, não dizer que ama, dizer apenas "não".
      Na ordem capitalista em que vivemos, onde tudo circula na velocidade do vento que nos constitui como miserável mercadoria que somos, o "não" aparentemente vende mal.
      Mas não é verdade. O "não" é a alma do luxo. "Não quero" pode ser a diferença entre sua banalidade e sua sofisticação não afetada. Mas como tudo que é luxo, o "não" é difícil de achar, de cultivar, de sustentar.
      Vende-se muito livro de autoajuda por aí. O leitor que me acompanha sabe como detesto autoajuda. Uma indústria que cresce na mesma proporção em que tudo perde o valor. Mas com isso não quero dizer que não precisemos de ajuda na vida. Somos uns coitados. Mas tem coisa melhor do que esse lixo.
      Outro problema é que umas das maiores contradições da vida é que o cotidiano das relações quase sempre inviabiliza afetos espontâneos e nos arremessa a convivência estratégica que apenas "lida" com problemas.
      Em resumo, quase sempre os membros da nossa família não são nossos melhores amigos e não é gente em que podemos confiar nossos desesperos porque sempre esperam de nós soluções para as demandas do dia a dia.
Maridos, esposas, filhos, irmãos, pais, quase sempre não servem para ouvir nossos segredos, mas apenas servem para constatar nossas misérias secretas.
      Não há relação evidente entre família e paixões alegres (como diria, mais ou menos, o filósofo do século 17 Baruch Spinoza).
      As responsabilidades são muitas, as expectativas excessivas, o que era amor se transforma em exigência de sucesso material e segurança previdenciária.
      Comumente ataco manifestações de jovens e do povo. Não porque ache que a vida como está seja grande coisa, mas porque considero a infelicidade eterna e atávica do homem a razão final de todo desconforto político, moral e afetivo.
      Quem diz que a solução do homem é política é sempre um mau caráter que gosta de política. Seja na universidade, seja em Brasília. A vida é uma prisão e não gosto de rotas de fuga falsas.
     No fundo, sou mais "anos 60" do que aqueles que dizem ser "anos 60", mas que viraram "ambientalista de terno e gravata", "defensores da qualidade de vida" ou "roqueiros que cantam para as crianças da África". Para mim vale sempre uma regra básica: não confio em nada em que departamentos de recursos humanos confiam.
      Nutro profunda simpatia por dois pensadores utópicos, Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau, ambos do século 19, representantes do movimento libertário americano.
Há uma dor característica causada por sorrisos falsos. Os músculos da face doem por conta do sorriso mentiroso, que é sempre o mais comum em nosso cotidiano, dizia Emerson, autor de "Self-Reliance" ("Autoconfiança"), de 1841, um clássico do movimento libertário.
      Os homens em sua maioria vivem uma vida de sereno desespero, dizia Thoreau, autor de "Walden" (1854), narrativa de um período de sua vida em que se isolou numa casa num bosque.
      Thoreau ficou mais conhecido como o criador do conceito de "desobediência civil", quando disse que o melhor governo é o que governa menos ou de forma nenhuma.
      Hoje o pensamento público tornou-se monótono porque todo mundo quer agradar e salvar o mundo. Eu não quero salvar ninguém, nem aspiro a um mundo melhor.
      Como dizia Emerson, existem grandes vantagens em sermos mal compreendidos ("misunderstood").
      A mania de sermos completamente compreendidos nada mais é do que o desejo de agradar a todos o tempo todo, uma das pragas típicas de um mundo marcado pelo marketing de tudo.
      Em 2012 espero ser muito mal compreendido por todos aqueles que quiserem fazer de mim seu ídolo, positivo ou negativo, supondo que sabem exatamente o que eu penso ou o que sou.
      Espero, acima de tudo, como dizia Thoreau, que não tenha que ir a lugar nenhum para o qual eu precise comprar uma roupa nova.
ponde.folha@uol.com.br

sábado, 7 de janeiro de 2012

Saudades de Deus


Saudades de Deus


O ateísmo me parece, entre todas as hipóteses sobre o universo, a mais fácil e simples
Tem coisa mais monótona do que discutir sobre a existência ou não de Deus? Ninguém crê em Deus "por razões lógicas". Isso é papo furado. Ninguém "decide" ter fé.
Tentar provar que Deus existe porque ele seria "uma necessidade da razão" me parece um engodo.
Primeiro porque a razão é risível em suas necessidades, como diria o cético Michel de Montaigne (século 16). A pergunta pela origem de tudo que existe (como numa espécie de aristotelismo aguado) não prova nada. Temos inúmeras necessidades que não são autoevidentes -por exemplo, que o bem deva vencer ao final das coisas.
Muitas vezes o mal vence e pronto. Quase sempre. Por outro lado, é interessante se pensar de onde veio a matéria que explodiu um dia e o lugar onde ela explodiu.
Mas isso nada prova acerca do Deus ocidental. O princípio pode ser uma mecânica estúpida.
Aliás, o chamado "argument from evil" (argumento a partir do mal) do ateísmo é famoso. Autores grandes como Dostoiévski e Kafka, entre outros, já o frequentaram de forma brilhante.
O argumento basicamente é o seguinte: se Deus é bom, por que o mundo é mau? Alguns já chegaram a supor que Deus seria mesmo mau, como o próprio Kafka.
Duas questões são importantes apontar nesse debate, uma com relação aos crentes, outra aos ateus.
Primeiro os crentes. Uma falácia comum por parte dos crentes é supor que seria impossível você ser uma pessoa razoavelmente moral sem alguma forma de religião. A história prova que ateus e crentes dividem o mesmo lote de miséria moral. Pouco importa ser ou não crente.
Pessoalmente, acho que o acaso decide: o temperamento (o acaso de você ter nascido "assim ou assado") é quase sempre o juiz do comportamento humano e não "valores" religiosos ou éticos seculares (não religiosos).
Portanto, a tentativa de afirmar que, se você é ateu você necessariamente não é "bom", é pura falácia. Tampouco penso que uma religião faça falta para todas as pessoas. Muita gente vive sem crise sem acreditar em coisa nenhuma "do outro mundo". Isso não significa que ela seja sempre feliz (tampouco os religiosos o são), a (in)felicidade depende de inúmeros fatores.
E mais: "crer ou não crer" não é algo que você escolhe, "acontece". Grandes teólogos como Santo Agostinho, Lutero e Calvino diziam que a "fé é uma graça" (simplificando a coisa), alguns receberam o dom e outros não (portanto, ela "acontece", como eu dizia acima, não é você quem escolhe ter ou não). Acho essa ideia bem mais elegante do que esse papo furado acerca das necessidades racionais, sociais, morais ou psíquicas da crença.
Quanto aos ateus, acho risível a ideia de que o ateísmo seja uma "conquista" da razão ou de alguma forma de rigor moral ou "coragem cosmológica".
Nada disso, como já disse antes, e repito, até golfinhos conseguem ser ateus em sua maravilhosa vida aquática. Fiquei ateu quando tinha oito anos.
O ateísmo me parece, entre todas as hipóteses sobre o universo, a mais fácil, simples, rápida e quase "fast food theory" (teoria fast food).
Não precisamos nos esforçar muito para perceber que podemos talvez um dia descobrir a causa
"natural" do universo, ou acabarmos como espécie antes de descobrir qualquer coisa. E "who cares" se sumirmos um dia?
E mais: é quase evidente que somos uma raça abandonada na face da Terra e a indiferença dos elementos naturais para conosco (sejam eles externos ou internos ao nosso corpo) salta aos olhos.
E mais: a possibilidade de estarmos sozinhos é sempre mais fácil do que acompanhados por um ser maravilhoso, dono do universo e que sabe cada fio do cabelo que você tem na cabeça.
Não há nenhuma evidencia definitiva de que Deus ou que qualquer outra entidade divina exista. O ônus da prova é de quem crê. Além do fato de que os japoneses, caras bem inteligentes, não creem em Jesus na maioria das vezes.
Acho Deus uma hipótese acerca da origem das coisas mais elegante do que a dos golfinhos. Mas, por outro lado, a ideia de que um dia o pó tomou consciência de si mesmo e constatou sua dolorosa solidão cósmica é bela como uma ópera.
ponde.folha@uol.com.br

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Feliz Ano Novo, Kafka.

Luiz Felipe Pondé
Feliz Ano-Novo, Kafka

Acho o Réveillon uma festa chatíssima. Quando você estiver lendo esta coluna, estarei em Tel Aviv, e ainda bem que aqui não tem Réveillon.
A cidade é patrimônio cultural universal porque tem o maior conjunto arquitetônico Bauhaus do mundo, o que dá a ela um tom entre o blasé (isto é, a soma do cinza e branco típico dos prédios Bauhaus de poucos andares com o desleixo chique característico da população local mediterrânea) e o moderno da primeira modernização, antes de a modernidade virar essa coisa brega de massa.
Tel Aviv é descrita pelos israelenses como sendo "outro mundo", diferente do resto do país, justamente por seu caráter secular, arredio ao fanatismo religioso que cresce por aqui e aberto à convivência mundana.
Diante desse cenário, sempre que estou nesta cidade, meu pessimismo (que tem sua origem provavelmente em alguma forma de disfunção fisiológica) cede. O desleixo e o ar mediterrâneo, associados ao desespero mudo, embutido no cotidiano de quem se sabe uma espécie caçada, me acalmam. Estranho? Sou estranho mesmo.
Segundo reza uma das lendas sobre Franz Kafka, quando perguntaram a ele se não havia esperanças para o mundo, ele teria respondido: "Esperanças há muitas, mas não para nós".
De todas as formas de pessimismo, a de Kafka é a única que me assusta. Não temo pessimismos cosmológicos. Não espero nada da vida na forma de recompensa moral (aquilo que a teologia cristã chama "retribuição pelos méritos").
Antes de tudo porque não sou uma pessoa boa. Raramente me preocupo com os outros, e a África pouco me importa. Nem a fome. Nem as baleias. Nem você.
Não conto com a misericórdia de Deus porque não a mereço. Guerras sempre existirão, e a humanidade faz o que pode para sobreviver ao mundo e a si mesma.
A possível falta de sentido da vida não me interessa. Durmo bem com ela. Sou daqueles que pensam que a metafísica é fruto de indisposição e mau humor. Mas temo o pessimismo kafkiano como nada mais no mundo. Temo a burocracia. Todo amante da burocracia tem cara de rato. Kafka tinha razão.
O pior mundo de Kafka não é sua barata, mas aquele do seu conto "A Construção". O roedor que faz a "construção" em sua casa é a melhor descrição do inferno burocrático em que o mundo se transformou.
Kafka, à diferença da maioria de nossos especialistas em ciências humanas, sabe que construímos a burocracia para nos sentir seguros, e não porque nos obrigam a isso. E o pior é que existem muitas razões para nos sentirmos inseguros, por isso não há saída para o inferno que é a burocracia.
Algumas almas menos brilhantes assumem que um mundo "paperless" (nada mais ridículo do que usar expressões em inglês para se sentir mais científico), ou seja, sem papel, seria menos burocrático. Risadas... Nada mais horroroso do que alguns restaurantes que começam a trocar seus menus "físicos" por iPads. Logo nos farão escolher nossos pratos via rede, e eles acharão isso o máximo.
Um mundo "paperless" afogar-se-á em senhas. Você precisará de uma senha especial para usar sua senha menos especial e assim sucessivamente, ao infinito. Depois, precisará de um programa superavançado para ter acesso a todas as suas senhas e combiná-las de modo secreto (em si, uma outra senha).
Quando você tiver uma crise diante de tudo isso, algum burocrata dirá para você que isso tudo é para sua segurança. E você será obrigado a concordar, assumindo também uma cara de rato.
Mas, dirão as almas menos brilhantes, graças a Deus estamos cortando menos árvores e não estamos gerando papel.
No conto de Kafka "A Construção", nosso roedor atarefado teme um ruído horroroso que vem não sabe de onde e por isso começa a construir "rotas de fuga" em sua moradia subterrânea.
Logo, a rede de "rotas de fuga" é tão grande que ele se esquece onde começou e descobre que, apesar de o ruído aumentar cada vez mais e sua sensação de perigo aumentar junto com o ruído, ele já não sabe como fugir, porque suas rotas de fuga viraram um labirinto infernal.
O mundo de Kafka é uma prisão a céu aberto, e os ratos venceram. Feliz Ano-Novo.