''Eu tenho meus motivos pra ser exatamente do jeito que eu sou, acredite.''

domingo, 15 de novembro de 2009

O Pagador de Promessas


Filme premiadissímo em Cannes em 1962 (Único filme brasileiro a ganhar esse prêmio). Uma obra-prima da literatura brasileira com o brilhantismo de Leonardo Villar e Glória Menezes comom protagonistas. Outro filme que vale a pena ver.A peça de Dias Gomes tem nítidos propósitos de evidenciar certas questões sócio-culturais da vida brasileira, em detrimento do aprofundamento psicológico de seus personagens. Assim, ganha força no drama a visão crítica quanto:

a) à intolerância da Igreja católica, personificada no autoritarismo do Padre Olavo, e na insensibilidade do Monsenhor convocado a resolver o problema;

b) à incapacidade das autoridades que representam o Estado - no episódio, a polícia - de lidar com questões multiculturais, transformando um caso de diferença cultural em um caso policial;

c) à voracidade inescrupulosa da imprensa, simbolizada no Repórter, um perfeito mau-caráter, completamente desinteressado no drama do protagonista, mas muito interessado na repercussão que a história pode ter;

d) ao grande fosso que separa, ainda, o Brasil urbano do Brasil rural: Zé do Burro não consegue compreender por que lhe tentam impedir de cumprir sua promessa; os padres, a polícia, a imprensa não conseguem compreender quem é Zé do Burro, sua origem ingênua, com outros códigos culturais, outras posturas. Além disso, a peça mostra as variadas facetas populares: o gigolô esperto, a vendedora de quitutes, o poeta improvisador, os capoeiristas. O final simbólico aponta em duas direções. Em primeiro lugar a morte do Zé do Burro mostra-se com fim inevitável para o choque cultural violento que se opera na peça: ninguém, entre as autoridades da cidade grande, é capaz de assimilar o sincretismo religioso tão característico de grandes camadas sociais no Brasil, especialmente no interior nordestino. Em segundo lugar, a entrada dos capoeiristas na igreja, carregando a cruz com o corpo, sinaliza para rechaçar a inutilidade daquela morte: os populares compreenderam o gesto de Zé do Burro.
Espero que gostem da dica. Beijos a todos.
Tânia


Interessante retrato da miscegenação religiosa brasileira, "O Pagador de Promessas" tem em sua maior preocupação destacar a sincera ingenuidade e devoção do povo, em oposição a burocratização imposta pelo próprio sistema católico em sua organização interior. "Zé do burro", um homem simples do campo trata de cumprir sua promessa (ou tentar) após ter tido Nicolau, seu burro, curado devido a promessa feita a Santa Bárbara. O que deveria ser um simples ato de fé toma proporções gigantescas quando Zé é barrado pelo vigário local, que o impede de entrar na igreja carregando a cruz que havia prometido.
Os interesses locais então se voltam para o pequeno caso, e cada segmento social da cidade quer tomar partido da situação da forma que puder. Os jornalistas se interessam pelo caso levantando a bandeira de partirem em defesa da "liberdade de expressão" que o vigário estaria colocando em jogo, ou pelo menos pretendem parecer estar fazendo isso, mas na verdade, como é colocado na primeira cena que se dá dentro da redação do jornal eles precisam de notícias que façam dinheiro, e não de notícias de qualidade. O texto de Dias Gomes é, nesse ponto, direto e até

um tanto quanto maniqueísta, as intenções são desmascaradas demais, não há sutileza nas palavras dos oportunistas, o que da a tudo uma leve obviedade. Nem os clérigos, que exigem de Zé uma "retificação" de sua promessa vem com meias palavras em seus discursos sobre como o evento pode alterar e afetar a estrutura interna (ao fazer uma concessão e deixar Zé cumprir sua promessa) e a visão política externa que se tem da igreja: eles sabem que se trata de um acontecimento com repercussão social e é apenas isso que lhes interessa, não a genuina devoção de Zé e seu ato. Políticos se aproximam dele pedindo apoio, mães de santo defendem-no como representante do candomblé, até mesmo o contador de histórias oferece seus talentos como proseador para imortalizar a história, do seu ponto de vista. Ele passa a ser visto como santo e mártir, e ao mesmo tempo é um infiel para igreja e um criminoso arruaceiro para polícia. Cada instituição passa a legitimar sua presença, ou condena-la, da forma que lhe cabe, Zé passa a ser um exemplo dos excluídos sociais e tem a ele agregado o ideal de injustiça e liberdade desejado pelo povo, é associado a "revolução" social, a "reforma agrária" e classificado como "comunista" sem ao menos ter idéia do que são estes conceitos tão alienígenas ao seu universo. Temos que os grupos sociais passam a projetar nele suas perspectivas e crenças, ele deixa de ser um indivíduo para tornar-se um ícone, maleável de acordo com os interesses de quem se aproxima e defende suas teses usando Zé como exemplo. Ele deixa de ser um homem com um propósito pessoal na situação em que se colocou, pois passa a ser colocado pelo meio em que está. Martirizado, ele torna-se o novo Cristo local, e através de sua morte é imortalizado como ícone, sem conseguir simplesmente pagar a sua promessa.
Mas é isso que interessa a Dias Gomes e Anselmo Duarte: a devoção sincera e ingênua de um povo que desconhece as raízes históricas e sociais de seus cultos, e transforma tudo em um amálgama eficaz de crenças que se inter-relacionam em harmonia, a despeito de suas origens históricas, sociais, geográficas e culturais divergentes. O povo tudo adapta, e o povo brasileiro cria sua cultura a partir desses elementos heterogêneos. Não importa se no candomblé Santa Bárbara chama-se Iansã, se a promessa foi feita em um terreiro e está sendo entregue em uma igreja, se Zé carrega nas costas uma cruz no interior da Bahia enquanto Cristo o fez a 2000 anos atrás em Jerusalém. A sinceridade com que o povo cria o seu meio, a suas crenças e como isso se reflete de forma concreta em seus atos é o que interessa a Gomes. A pureza desses atos e da mentalidade simples desse povo entram em conflito direto com a complicada hierarquização e politicagem da igreja católica organizada, que não faz sentido e tampouco interessa a esse povo.
O filme conta com uma produção técnica excelente, apoiada pela fotografia de Chick Fowle (alguns ângulos de câmera como a igreja de cabeça para baixo ao final e a visão de Zé sentado a escadaria sendo filmado através das grades, preso a situação em que está, mostram alguns toques especiais), edição concisa de Carlos Coimbra e excelente e segura direção de Anselmo Duarte, um estreante, faz excepcional trabalho com os atores (destacam-se Leonardo Vilar, passando toda a humildade e sinceridade de Zé e Glória Menezes como sua companheira aflita, assim como Norma Bengell que passa grande credibilidade retratando uma personagem instável e difícil) e consegue um gradual desenvolvimento da narrativa até o clímax final, que se fecha de forma densa e sublime.

Joaquim Guirotti é cineasta, formado em Cinema pela FAAP.

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