''Eu tenho meus motivos pra ser exatamente do jeito que eu sou, acredite.''

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

O prazer de ler

    
      Quando leio, sinto que sou transportada àquele mundo imaginário ou até mesmo aquele tempo histórico, sou a protagonista do enredo, a heroína, a vilã. Recentemente li a vida de Sócrates, era como se estivesse presente ao seu julgamento e até mesmo em sua morte. Leio com a alma, e como diz Rubem Alves, às vezes tenho que digerir jiló cozido com nabo cru (apesar de desgostar somente do nabo..rs), e me vejo obrigada a ler livros técnicos mas necessários à minha atualização profissional. Que bom seria se pudessemos fazer somente o que nos causa prazer. Passaria minhas tardes em cursos na Casa do Saber, outras na massagista, cinemas... mas a vida é outra... (pelo menos a minha....) então vivo (como diz meu prof. Clóvis...) A vida que vale a pena ser vivida... Aproveitando cada minuto que me sobra para gozar das coisas boas da vida...
    Espero que apreciem o texto, me fez sentir várias sensações ao lê-lo, à vocês... Rubem Alves.






     Ler pode ser uma fonte de alegria. "Pode ser". Nem sempre é. Livros são iguais a comida. Há pratos refinados, como os cailles au sarcophage, especialidade de Babette, que começam por dar prazer ao corpo e terminam por dar alegria à alma. E há as gororobas, malcozidas, empelotadas, salgadas, engorduradas, que além de produzir vômito e diarréias no corpo produzem perturbações semelhantes na alma. Assim também os livros.
     Ler é uma virtude gastronômica: requer uma educação da sensibilidade, uma arte de discriminar os gostos. O chef prova os pratos que prepara antes de servi-los. O leitor cuidadoso, de forma semelhante, "prova" um pequeno canapé do livro, antes de se entregar à leitura.
     Ler sem gostar é prova de doidice. Pelo menos, é o que Adélia Prado pensa: " A televisão está mostrando o hospício, a doida falando:'Quero voltar para casa de portão azul'. Quem fala assim não pode ser doido não. Mais doido é quem fala como o Ednaldo: 'Tou lendo um livro muito ruim, mas vou até o fim...' "
     Contra os professores de literatura que gostam de ser durões e argumentam que há muito livro duro de roer (a própria expressão está dizendo: nem é de comer, é de roer; objeto apropriado à dieta de ratos e castores) que tem de ser roído de qualquer forma (vai cair na prova, no vestibular), eu cito Borges. Ele conta que, quando foi professor de literatura na Faculdade de Buenos Aires, recusava-se a dar bibliografia a seus alunos. "Não é preciso bibliografia. Afinal Shakespeare desconhecia completamente a bibliografia shakesperiana." E lhes perguntava: "Por que vocês não estudam diretamente os textos? Se tais textos lhes agradam, ótimo. Caso contrário, não continuem, pois a leitura obrigatória é uma coisa tão absurda quanto falar em felicidade obrigatória".
      Quando minha filha começou a fazer suas primeiras incursões no campo da literatura adulta (desde muito cedo eu a introduzi aos prazeres da literatura infantil), ela teve de ler, como tarefa, o livro de Stendhal O vermelho e o negro (1830). Trata-se de um desses livros duros de roer, tradução do francês, que provocou as mais variadas convulsões estomacais-cerebrais não só em minha filha como também em seus colegas de classe, sobrando as perturbações para os pais, que tinham de vir em socorro dos filhos desamparados, obrigados a comer à força aquela terrível refeição de jiló cozido e nabo cru. Escrevi para o jovem professor (os professores jovens são terríveis, eles ainda não se desembaraçaram do cipoal de teorias aprendidas na universidade, têm sempre muita coisa a provar, e acreditam demais no que pensam saber) falando de meu amor à literatura, de meu desejo de que minha filha aprendesse o prazer da leitura, citei Borges e sugeri que havia uma infinidade de outros livros que seriam de paladar delicioso aos adolescentes, excelentes aperitivos para quem está começando. Ele me respondeu, imperturbável, que seu objetivo era desenvolver uma consciência crítica e que os alunos teriam mesmo de mastigar, engolir e digerir o jiló cozido e o nabo cru. E assim foi.
     Percebi que ele era professor. Traduzindo em nossa linguagem gastronômica: ele não era um cozinheiro; era um dieticista. É preciso que se saiba que cozinheiros e dieticistas, embora ambos envolvidos em cozinhar, são inimigos radicais. Parece que estão fazendo a mesma coisa. Mas o que um faz nada tem a ver com o que o outro faz. Os dieticistas estão interessados em alimentar de maneira científica aqueles que comem. Medem vitaminas, proteínas, carboidratos, sais minerais, colesterol. Para eles issso é a substância da refeição. Os temperos, cheiros e sabores, eles os usam como disfarces, a fim de que a coisa seja comida. Sua presença é indispensável em hospitais, e ali eles se encontram como auxiliares dos médicos e enfermeiras. Os cozinheiros, ao contrário, não estão interessados em alimentar. Estão interessados em produzir prazer e felicidade. temperos, cheiros e sabores, para eles, não são disfarces: são a própria coisa. A culinária é o kama-sutra da boca, o livro dos prazeres da boca. Cozinheiros são auxiliares dos amantes. A comida que sai das mãos do dieticista é uma coisa de necessidade. A comida que sai das mãos do cozinheiro é uma coisa de amor.
     Ele era um professor de literatura. Não era um escritor. (Eis uma dialética complicada: de um lado o escritor, aquele que escreve, que faz a coisa; do outro aquele que não faz a coisa, mas faz cicência daquilo que o outro fez: o pianista e o crítico, o filósofo e o professor de filosofia.)
     Literatura a fim de produzir consciência crítica. quem escreve não escreve a fim de. Para aquele que cria, sua obra é um fim em si mesmo. A literatura não tem objetivos além de si mesma. O prazer da leitura é seu próprio fim. Creio que foi Monet quem se queixou daqueles que perguntavam sobre o sentido de seus quadros. E disse algo parecido com: "Não pintei quadros para que tivessem sentido. Pintei quadros para que aqueles que os vissem os achassem bonitos". A literatura não tem objetivos pedagógicos. Não tem por objetivo a comunicação de ideias. Ela não é uma forma indireta de inculcar verdades que poderiam ser comunicadas de maneira direta em livros de ciência ou filosofia. Um escritor não escreve para comunicar saberes. Escreve para comunicar sabores. O escritor escreve para que o leitor tenha o prazer da leitura. O texto tem de dar provas de que me deseja, dizia Barthes. O texto me deseja? Coisa gastrônomica: o prato tem de ser uma provocação do desejo. A prova de que o texto me deseja está no prazer que ele produz em mim. Quando sou forçado a interromper a leitura, fico triste. Essa é a prova do prazer que o texto me causa. que professor se atreveria a perguntar, numa prova: "Você fica triste quando para de ler um livro?"
     É possível, nas escolar, dar informações sobre a literatura. Mas não é possível ensinar a amá-la. Paul Goodman, um controvertido pensador norte-americano, diz: "Nunca ouvi de qualquer método, escolástico ou outro qualquer, para ensinar a literatura (humanities) que não terminasse por matá-la. Parece que a sobrevivência do gosto pela literatura tem dependido de milagres aleatórios que stão ficando cada vez menos frequentes". 
     Concordo com ele. São raros raríssimos, aqueles que pelo estudo escolar das coisas relativas à literatura tenham sido levados a amar a leitura. A razão para isso é simples: tudo, em nossas escolas, está orientado no sentido de testar saberes. A questoa do amor pelo objeto - seja a geografia, a história ou as ciências - é estranha aos nossos objetivos educacionais. Não admira que, passados os vestibulares, quase tudo seja esquecido e os livros sejam esquecidos nas estantes. Às escolas e aos pais pouco importa o prazer que o aluno possa ter. O que importa é o boletim.
     Ler pode ser uma fonte de alegria. Por isso mesmo tenho dó das crianças e dos adolesscentes que, depois de muito sofrer nas aulas de gramática, análise sintática e escolas literárias, saem das escolas sem ter sido iniciados nos polimórficos gozos da leitura. é como se lhes faltassem órgãos de prazer. São castrados. Não pode, penetrar no corpo de prazer que é o livro nem sentir o prazer de ser penetrados por ele. Sabem ler, mas são analfabetos. Porque, como dizia Mário Quintana, analfabeto é precisamente aquele que, sabendo ler, não lê. 
     Rubem Alves

Um comentário:

  1. Olá, "Linda Oriental"! Ou devo chamá-la de "Impressôes"? Desculpe, é que não consegui achar seu nome no blog. Digitei o título de meu blog no google e achei você. A sua postagem "O prazer de ler" é fenomenal. Realmente ler alguns livros equivale a comer areia. Convido-a a visitar meu blog, acredito que irá gostar. Saudações!
    www.lerpodeserumprazer.blogspot.com

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