''Eu tenho meus motivos pra ser exatamente do jeito que eu sou, acredite.''

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O amor é amor, e pronto – é isso?

22/01/2011
Ama-se loucamente uma pessoa e, um dia, parece ser inevitável dizer a ela que tudo acabou e que vai deixá-la. Sabendo ou não que isso estava para ocorrer, esta pessoa reage de modo desesperado e diz “como que você pode fazer isso comigo”? A resposta do parceiro é imediata: “eu estou apaixonado por outra pessoa, aconteceu!”.
Ele imagina que numa resposta assim toda a possível falta moral esteja perdoada ou, melhor ainda, que nenhuma falta moral ocorreu. O pressuposto que ele quer que sua parceira, em vias de se tornar ex, aceite, é que a paixão ou o amor acontecem independentemente da vontade. Não se decide não amar. Além disso, o outro pressuposto é que, dizendo o que está dizendo, ele não ofende sua parceira. Ele não estaria dizendo “a outra pessoa é melhor”, pois não teria havido nenhuma comparação – não ao menos uma típica, talvez degradante para a ex. Assim sendo, o amor não pede justificações. Ele aparece e pronto. Reina. A pessoa que vai ser deixada para trás na relação teria de aceitar isso sem imputar culpa alguma ao já agora ex-parceiro.
Na verdade, a resposta da pessoa que é deixada mostra que a “lei do amor” não pode ser posta assim, de modo tão fácil. Não raro, a pessoa que está para ser deixada diz frases como “você podia ter evitado” e, em seguida, “o que é que essa pessoa tem que eu não tenho?” Essas frases não são tolas. Elas indicam que, do ponto de vista de quem é deixado, o pressuposto de que o amor não pode ser controlado pela vontade não vai ser aceito, não porque assim se deseja, mas simplesmente porque não seria de todo verdadeiro. Um bom e honesto parceiro saberia – teria de saber, na avaliação de quem é deixado – em que momento seu coração está se distanciando daquele que fez a primeira união e, por decisão racional, poderia ter evitado. Além do mais, também teria sido por decisão racional que houve a troca, e foi sim pesado na troca, por cálculo, cada um dos dotes do novo amor em relação ao velho.
Não temos muito que fazer, nesses casos, para decidir sobre o que ouvimos de ambos, se imaginarmos que podemos consultar as estrelas. Não há um discurso emitido pelo cosmos. Tudo que temos são os dois discursos e, junto com eles, nossa própria experiência e de outros. Filosoficamente, tentamos colocar tudo isso na balança. Nossa honestidade intelectual terá de chegar ao seguinte ponto: o primeiro discurso não é falso, mas a esperança de controle do amor pela vontade, no segundo discurso, não é uma completa tolice “de momento”. Nossa própria experiência diz que, por mais que o amor tenha nos tomado, como é próprio da flecha do Cupido, em alguns momentos, talvez (e esse talvez parece ser tudo!) nós tenhamos feito algum cálculo, em algum momento nós tivemos força para decidir não deixar a flecha sangrar até o fim, mas não colocamos nenhuma força nessa vontade.  Deixamos o desejo vencer a vontade não por irracionalidade, mas por uma pitada de racionalidade. Avaliamos o que seria o melhor e optamos pelo que achamos o melhor, melhor em algum sentido.
A regra básica de quem termina o relacionamento, no caso, é que fazendo assim está sendo honesto com seu coração e, por tabela, criando uma situação honesta com quem é deixado e com quem irá formar novo par. A regra básica de quem é deixado é que essa honestidade não é um bom negócio e, além disso, não é uma honestidade tão honesta quanto se quer fazer parecer. Por fim, lá do lado de quem espera seu amor para formar o novo par, há só uma avaliação: caso meu amor não venha, então, falou mais alto nele não o amor mesmo, mas a covardia, ele sucumbiu ao medo da pressão social, dos filhos, do poder de barganha daquele que seria o ex etc. Ou seja, não é que o amor será decretado perdedor, é que o amor será visto como tendo entrado na luta apenas com uma mão, não com as duas. Ou Cupido teria lançado uma flecha curta, que pegou apenas parte do coração.
É por termos essas dúvidas e por causa dessa história ser empiricamente vivida por muitos de nós – inclusive os filósofos –, não raro mais de uma vez na vida, que dizemos que há, sim, uma discussão filosófica sobre a justificação do amor. O amor parece querer escapar de poder ser justificado e, assim, não ter de prestar contas no tribunal da razão, a filosofia. Mas, quem é deixado, traz a possibilidade, sim, da instituição desse tribunal. O amor não se auto-justifica, é isso que quem é deixado põe na ordem do dia. Não de todo – de todo ele não se auto-justifica. Ao menos uma dúvida sobre isso cabe à razão. Portanto, a filosofia pode por uma cunha na questão do amor. Deve por (talvez a filosofia tenha descoberto isso porque há mais filósofos cornudos que outros profissionais).
Dizer que o amor se justifica é um dogmatismo que a pessoa deixada não aceita. Dizer que essa pessoa está errada apenas porque quer não ser deixada, não é um enunciado com o qual podemos concordar de pronto. Então, como filósofos, nós temos de considerar que talvez nossa conversação jamais admita, mesmo, que o amor pode vir e se colocar como ele quer. Ele pode vir, mas vem, como tudo que é terreno, para em determinada hora enfrentar o cair da noite. Ora, quando cai a noite, a Coruja de Minerva levanta seu vôo. Depois, de manhã, as justificativas, as racionalizações, as explicações, terão seu lugar. A filosofia se fez. Ela se faz após a história, disse Hegel. É isso que a pessoa que estava para ser deixada anunciou: a voz de Hegel, o vôo da Coruja.  Para darmos poder absoluto ao amor, teríamos de, nessas circunstâncias, deixar a luz acesa no dia anterior, de modo a não permitir que a Coruja viesse a perceber o crepúsculo; assim ela acabaria por não levantar vôo. Mas Hegel diria: bobagem, haverá depois outro crepúsculo e cedo ou tarde a Coruja fará seu sobrevôo. Ou seja, mais cedo ou mais tarde a filosofia irá ela própria expor tudo racionalmente, tirando da “lei do amor” essa sua total força com a qual ele se apresenta num primeiro momento.
Mas o vôo da Coruja, ou seja, a intervenção da razão para dar a última palavra, pode não ser a palavra de condenação do amor. A razão pode aparecer e, então, não deixar o amor ficar com sua posição como sendo a última, mas isso não quer dizer que a razão, por ela própria, na sua justificativa, vá dizer que o amor não tinha o direito de aparecer como apareceu no caso, voraz e absoluto. A razão pode, na sua explicação, simplesmente dizer que ele, o amor, sendo uma força natural, se legitima por ser essa força natural objetiva, ou seja, independente de nós, e que, em certas circunstâncias, pode derrotar a razão. A razão, ao falar, só pelo fato de poder falar, de dar a explicação última, não precisa falar dizendo que, em todas as circunstâncias, ela vence, ela está alerta, ela comanda. Ela pode vir dar a justificativa final dizendo que ela própria, quando vê o amor botando seu focinho para fora em uma situação, não pode fazer muito coisa.
Nesse caso, a filosofia retoma a tensão do problema, o problema de se saber se o amor, ao se por, se justifica por si só ou não. Eu disse tensão, e não solução, pois mesmo dizendo que sim, que o amor é objetivo e incontrolável, a filosofia, por poder narrar tudo ao final, também estará dizendo, em parte, que não, que a razão dá a última palavra e, então, poderia, por ter essa força, ter dado a palavra contra o amor no caso relatado, e talvez realmente tenha dado.
© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ

sábado, 22 de janeiro de 2011

Casamento é coisa de beijo

 

 Sempre tive esse pensamento... "beijo é o termômetro do relacionamento", se ainda tiver aquele gostinho de "quero mais" está tudo bem, mas quando você não sente nada, aquele beijo "obrigatório",  ou fica aquele gosto de "carne com carne"... está faltando algo aí...

 

Casamento é coisa de beijo

20/01/2011
Os casais britânicos brigam quase todos os dias no ano. As brigas ocorrem em geral às quintas, às oito da noite, e duram alguns minutos. As brigas acontecem por motivos banais, bem conhecidos dos casais brasileiros: as mulheres reclamam que seus parceiros não baixam a tampa da privada, não dão descarga, deixam xícaras pela casa e toalhas no chão etc.; os homens reclamam que as mulheres deixam cabelos no ralo, demoram para se aprontar, assistem novelas demais, vivem dizendo que eles prestam para nada etc. Ambos se acusam de surfar na TV com o controle remoto.  A pesquisa está nos jornais britânicos, brasileiros e de outros países.
Para um filósofo como eu, casado pela terceira vez, a lista de mútuas reclamações poderia ser muito maior – ao menos se penso no meu segundo casamento. Mas, isso, realmente pouco importa. Pois essas brigas nada significam quando outros elementos não interferem. Quando outros elementos mais importantes e, não raro, menos visíveis, interferem, então esses bate bocas banais começam a pesar no casamento. Servem de gota d’água para que ambos optem por enriquecer algum advogado abutre que espera há tempos o divórcio.
Uma boa parte dos casamentos acaba antes da chamada “crise dos sete anos”. Mas as pessoas se toleram um pouco mais porque, principalmente na classe média, não conseguem sobreviver ao que imaginam que seria o sentimento de culpa diante dos filhos. Mas, uma hora ou outra, uma dessas briguinhas tolas acaba pondo fim em tudo. Essas briguinhas, então, passam a contar como o que realmente pesou, principalmente para as mulheres que, de fato, ao verbalizarem sobre o pedido de separação, não deixam nunca – ao contrário dos homens – de citar os motivos banais como os únicos ou os prioritários.
Do mesmo modo que há uma indústria do casamento, há uma indústria do descasamento. Entre ambas, uma terceira indústria põe a cabeça, também procurando seu espaço mercadológico, a de salvação de casamento. “O casamento está em perigo”, então, eis que um conjunto de super-heróis especializados é convocado a “salvá-lo”. Das três indústrias, sem dúvida essa terceira é a mais ridícula, mesmo quando séria. Não à toa ela e a preferida do cinema, que a lança em cenas hilariantes até quando o filme não é comédia.
Realmente parece ridículo que alguém acredite que possa fazer pessoas não se descasarem se elas já não estão mais felizes juntas. Parece sempre ser algo meio que sado-masoquista. Nessa indústria tudo funciona como se padres, pastores, psicólogos, terapeutas, amigos de boa vontade e conselheiros de todo tipo quisessem, antes de tudo, ver as pessoas só se separarem depois de algum sofrimento, e não no momento certo, em que ainda poderiam preservar alguma amizade. Os casamentos acabam e as pessoas deveriam entender isso. Mas elas não conseguem entender isso e, então, alimentam uma indústria que é especialista em recrutar uma mão de obra que quando não é simplesmente desqualificada é, não raro, mal intencionada.
O que resta de um casamento que não se desfez? Apenas duas pessoas bem infelizes. Porque os filhos, em relação aos quais tudo se fez para não se divorciar, já estão em outras casas, reproduzindo eles mesmos a infelicidade do “felizes para sempre” – a maldição que se joga em vários casais que optam por casar sem perceberem que já namoraram demais e nem estão mais apaixonados, estão apenas na rotina. Uma rotina que faz algumas moças levarem pijamas para o motel!
Os casamentos podem ser eternos. Mas, para tal, é necessário que o namoro seja exercido. Ora, quando o casal não quer mais beijar na boca, quando isso não mais seduz, não há mais casamento. É claro que alguns casais continuam casados porque, desde o início, nunca houve beijo na boca bem curtido no namoro. Escravos não lutam pela liberdade, dizia Rousseau. Eu posso parafrasear e dizer: não amantes não lutam para amar. Quando não se sabe o que é o amor, não há razão para se querê-lo. Eis as frases, então: “homem é tudo igual” ou “mulher é tudo igual”. A primeira frase é da mulher que nunca foi amada, a segunda frase é, em geral, de gay enrustido.
Quem experimentou o beijo na boca como entrada para o amor e porta aberta para um casamento que vale a pena, sabe muito bem quando o casamento acabou e quando ele não acabou. Sabe, inclusive, se vai ou não acabar, caso possa prestar atenção na vida a dois mais do que presta atenção no trabalho, na roupa da vizinha ou no carro do patrão.
Os casamentos são namoros em que os parceiros resolveram testar a paciência de Deus. Mas, antes de tudo, eles são o que se pode saber pelos lábios e língua, sem que seja a fala.
© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O que é o amor?

18/01/2011
O que é o amor?  São quatro as características principais do amor por uma pessoa: a preocupação desinteressada pelo amado ou amada; a escolha pessoal, tornando o amado ou a amada insubstituível; a identidade com o amado ou amada, no sentido de acolher os interesses dele ou dela como se fossem os seus próprios; por fim, a restrição da vontade, ou seja, o não controle total sobre o amor, que surge (e se encaminha) por ele mesmo em relação ao amado ou amada.
Essas características estão na base da tentativa do filósofo americano Harry Frankfurt de conceituar o amor, no seu belo conjunto de três ensaios, apresentados no As razões do amor (São Paulo, Martins Fontes, 2007, publicado nos Estados Unidos em 2004). Ele as encontra, entre outros lugares, principalmente no amor de pais por filhos. Aliás, ele toma esse tipo de amor quase que como o tipo ideal, aquele que poderia preencher com mais facilidade as exigências do seu conceito de amor.
Para filósofos do conceito creio que o esforço do professor Harry Frankfurt é mais que louvável. Todavia, o que se ganha e o que se perde com essa delimitação do amor? Já de pronto, temos um problema: uma das relações amorosas mais corriqueiras e, sem dúvida, aquela pela qual construímos nossas vidas – afinal, em geral antes namoramos e nos casamos, para depois termos filhos – parece ficar de fora das fronteiras do conceito aqui posto. O amor do enamoramento é visivelmente interessado. Aliás, quando um homem ou uma mulher, até então amantes, não se amam mais, a primeira coisa que percebem em relação aos seus parceiros é que eles não lhes são mais interessantes. Eles são aquilo que não lhes desperta mais o interesse.
O filósofo espanhol Ortega y Gasset escreveu certa vez que o que um homem pode ouvir de melhor de uma mulher, após um ou dois encontros, é ela dizer que ele é “interessante”. A mulher que diz que um homem é lindo pode não estar caída por ele. A mulher que diz que um homem é bom, também não. Mas a mulher que diz que um homem é interessante, se não está caída, ela está a menos de meio passo disso.
Toda nossa linguagem é clara quanto ao interesse. O que dizemos quando alguém nos pergunta a respeito de uma mulher? Ora, usamos essas palavras: “não, ela não me interessa”. Ou então: “sim, eu me interesso por ela”.
Mas, se é assim, como que Harry Frankfurt pode querer conceituar o amor e, na primeira característica, coloca o interesse de fora?
Podemos dizer que o filósofo americano trata da “preocupação desinteressada” em um sentido muito específico. O que há nesse desinteresse é que eu, o amante, no meu cuidado com a amada, a tomo como um fim, não quero o seu bem de modo que isto seja um meio para eu alcançar outra coisa senão o seu bem. Quero o seu bem e pronto. O desinteresse, nesse caso, não é o desinteresse do não-interesse, mas o desinteresse de quem não quer agir com o bem da amada para que, terminada a ação, se possa alcançar outra coisa que não aquilo que já se alcançou, que é o bem da amada.
Podemos amar alguém assim, segundo esse tipo de desinteresse, e ao mesmo tempo termos essa pessoa como o nosso marido ou a nossa esposa, e não necessariamente nosso filho ou filha.  Podemos mesmo? Mas, o amor entre casais, o amor do enamoramento, não exige que tenhamos um interesse no outro, algo que tem um vínculo necessário com a relação instrumental , que é a obtenção de prazer com o corpo do outro? E mesmo quando se trata de dar prazer, não é também o dar prazer – o fazer gozar – altamente prazeroso para nós mesmos? Não é nesse egoísmo do amor de enamorados autênticos que o amor se prontifica a aparecer? Ora, se é assim, temos então de eliminar isso para podermos dizer, com o filósofo americano, que estamos diante do amor? Para dizer que estamos diante do amor temos de justamente deixar de lado essa característica tão central de uma das principais relações denominadas por nós de amor?
Poderíamos dizer, então, que não há amor e, sim, amores. Há o amor conceituado por Harry Frankfurt, no qual o amor de pais por filhos estaria bem representado. E haveria o amor entre casais, que então teria de requisitar dos filósofos um outro conceito. Isso seria bem estranho, pois desse modo, encontrando um conceito para cada tipo de amor, já não teríamos conceito algum e, sim, uma tipologia. Ao fim e ao cabo não teríamos o conceito de amor, mas a descoberta de que o amor não se conceitua e que, tudo que podemos fazer nada é senão irmos tateando aqui e ali, adjetivando a palavra amor para cada circunstância. Fim de papo?
Creio que o problema de Harry Frankfurt merece melhor análise. Parece que sua tentativa de conceituação ainda merece mais discussão.  Posso imaginar que o amor que sinto pela minha esposa é, sim, o de preocupação desinteressada. Quero o bem dela pelo bem dela e nada mais. Quero vê-la feliz em tudo que faz. Quero que ela faça tudo que a deixa realizada e feliz. Não cuido dela pensando em outra coisa senão em ver que o cuidado a deixou … cuidada! Mas, em determinados momentos do dia, esse amor perde sua faceta completamente altruísta e até solitária. Meu olhar cruza com o dela e, sem que tenhamos de conversar, a idéia de nos darmos prazer um ao outro se encaixa numa espécie de recíproca recompensa que não é nem maior e nem menor que a preocupação desinteressada, mas é de outra ordem. Assim, o sexo e o prazer surgem como um plus, que não fica maior que a preocupação desinteressada. Desse modo, a preocupação desinteressada parece conviver bem como o interesse pelo outro, pela busca como um casal se encontra, dá prazer e “faz amor”. O amor da cama faz parte do amor e o amor desinteressado faz parte do amor feito na cama. Parece que não há nenhum problema aí.
No dia seguinte, se minha esposa tem uma gripe, eu coloco em segundo plano todas as minhas atividades para cuidar dela. Não quero outra coisa senão vê-la novamente bem. Não quero isso para fazer sexo com ela. Todavia, mesmo que eu diga isso, eu sei – e não posso esquecer – que ela, uma vez ficando bem, estará ali disponível para mim, e terei aquele prazer com ela. Terei com ela aquele prazer que só ela consegue me dar, e que foi o motivo pelo qual eu a tornei minha parceira, e não outra. Sei muito bem que isso é o que todos chamam de o sucesso do casamento. Pois se o prazer que ela me dá é secundário ao prazer que posso ter com outra, não adianta eu querer me convencer do contrário, pois sei que casei errado. Ou seja, no limite, a quatro paredes, se penso que outra mulher pode me dar maior e melhor prazer que aquele que minha esposa me dá, sendo honesto comigo mesmo eu terei de dizer a mim mesmo: gosto da minha esposa, mas não amo.
Se assim é, a preocupação desinteressada, no limite, não existe. Isso não quer dizer que eu não daria a minha vida para que a minha esposa vivesse. Não! Posso gostar da minha mulher, minha esposa, e assim fazer. Isso pode ocorrer e, desse modo, outros irão dizer, “nossa, ele a amava de verdade”. Todavia, não era bem assim. Eu troquei a minha vida pela dela por seguir princípios morais ou por gostar muito dela como quem me ajudou na vida ou por achar que ela, sendo mais jovem, deveria viver mais. Não foi por amor, no sentido do amor que eu queria sentir com ela. Estou morto, não posso dizer mais nada, mas se pudesse voltar, diria com a boca cheia, caso ela não ficasse sabendo: “não, não foi por amor, não o amor pleno que, enfim, eu gostaria de ter tido por ela”. É este o ponto que faz o conceito de Harry Frankfurt ter problemas. É um bom conceito. Mas, logo na sua primeira característica, ele parece empurrar para fora o que deveria estar dentro, o amor típico que se manifesta entre um homem e uma mulher.
Será que há como resolver esta questão para Harry Frankfurt? Ou ele, consciente disso, quis mesmo colocar o conceito de amor como um elemento que coloca o amor dos enamorados no segundo plano? Ou a questão do conceito de amor é a de que não temos razão para conceituar?
© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Além da Vida

     



     Clint Eastwood na maturidade deixa de lado seus filmes mais violentos e torna-se mais introspectivo, mais ou menos espiritualizado.  Quando se falou num filme cujo tema tivesse um pé lá com o espiritismo, porém cujas mãos foram concebidas por ninguém menos do que Clint Eastwood, este receio de soar tudo muito didático ou fraco (considerando filmes nacionais sobre o tema como “Nosso Lar”) logo desaparece. Clint se mostra 100% imparcial em relação ao tema, não afirmando absolutamente nada.



     E aqui nós temos 3 histórias num mesmo filme: Uma francesa (Marie LeLay – interpretada por Cécile De France) que ao passar suas férias na Tailândia, acaba sendo atingida por um Tsunami e passa por uma experiência de quase morte; Gêmeos totalmente ligados e unidos (Jason e Marcus, interpretado pelos irmãos George e Frankie McLaren) que tentam tirar sua mãe de um vício – e claro, uma tragédia Eastwoodiana fazendo a morte de um deles; e por fim, um rapaz (George Lonegan – Matt Damon) que anseia por uma vida normal, quando ele se considera amaldiçoado por ter o “dom” de se comunicar com os mortos. Dom este que seu irmão incentiva, afirmando que ele pode ganhar muito dinheiro com isso. Estas 3 histórias paralelas tratam sobre a morte de três diferentes maneiras, e embora você saiba obviamente que estas histórias irão se cruzar, não se faz idéia do como.


     Para acentuar ainda mais o fato de não tender a corda para nenhum dos lados, charlatões que se dizem videntes aparecem no filme, tentando claramente advinhar algo sobre aqueles que perderam algum ente querido.Você se emociona em muitas cenas, que intercalam ceticismo (por parte dos charlatões) com acontecimentos emotivos cujos fatos beiram o sobrenatural e o anjo da guarda em ação.
     Penso que Clint Eastwood  colocou uma personagem francesa na história  para fazer referencia a Allan Kardec,  o codificador do espiritismo,  e teoricamente foi o primeiro país a difundir a doutrina graças a ele (cujo nome original é Hippolyte Léon Denizard Rivail), é engraçado como há tanto tabu em se falar de temas como experiência quase morte ou conversa com os mortos, sendo evitado nitidamente pelos editores franceses que se recusaram inicialmente a ajudar Marie a publicar seu livro no filme. Mas pode ser mera coincidência. Entretanto, em se tratando de Clint Eastwood, o mestre das sutilezas e analogias, eu não teria tanta certeza assim…
    Recomendo o filme, mas por ser longo e "parado" com exceção do tsunami inicial, procure uma poltrona num local onde possas esticar as pernas...rs 




     Abaixo o post semanal do filosofo Pondé que parece admirar muito Clint pois ministrará um curso sobre 4 filmes desse ator/diretor


LUIZ FELIPE PONDÉ "Além da vida"


O que encanta Clint Eastwood é a coragem diante de um mundo que se encontra em agonia



VOCÊ ACREDITA em vida após a morte? Eu não tenho opinião formada, por duas razões. Primeiro, porque se trata de uma questão sem resposta científica, mesmo que a sensibilidade espírita insista que "espiritismo é uma ciência". Bobagem, não há nada de científico no espiritismo.
Quando era adolescente, eu fazia a brincadeira do copo (fazer o copo "andar" e responder questões "soletrando" as palavras a partir de letras escritas sobre a mesa). Nunca funcionou comigo, mas sempre deu certo para pegar meninas assustadas. Corriam para nossos braços na velocidade da luz. Que delícia!
Pânico natural nas mulheres é um belo acessório de beleza e altamente afrodisíaco. Como saia curta e camisetas brancas molhadas. Certa feita, eu peguei uma menina assaz difícil no cinema graças ao bom "Tubarão".
Por outro lado, materialistas não têm tampouco uma resposta negativa definitiva para a questão da vida após a morte.
Minha segunda razão é mais blasé: nunca penso no assunto. Não me preocupo com a imortalidade da alma. O "sobrenatural" não me interessa nem um pouco.
Mas o tema é filosoficamente significativo porque as pessoas, por milhares de anos, têm se perguntado: "O que existe além da vida?"
O novo filme de Clint Eastwood, "Além da vida", trata desse tema de forma magistral. Mas não esqueçamos: trata-se de um Clint Eastwood. Isso significa o seguinte: um pano de fundo trágico permeado pelo problema da coragem versus a covardia diante do sofrimento humano.
Quando falo em "pano de fundo trágico", refiro-me a uma visão de mundo na qual a vida não tem nenhum sentido último aparente e, portanto, seus heróis se movimentam numa falta absoluta de sentido, numa espécie de escuridão moral.
O homem faz o que pode diante da opacidade de um mundo que lhe é, ao final, sempre hostil. O que encanta Clint Eastwood é a coragem diante de um mundo agônico, como todo autor que se move numa atmosfera trágica.
Existem duas virtudes básicas na tragédia: a coragem e a piedade (aos ateus alegrinhos: não confundir piedade com pieguice). Essa piedade é marcada pelo "páthos" que podemos sentir diante de nossos semelhantes torturados por um combate sem fim contra nossa agonia ("agon", em grego antigo, pode ser traduzido por "conflito").
"Além da vida" não é um filme espírita. Não é uma historinha sobre um médium que fica falando com mortos ou escrevendo cartas psicografadas cheias de obviedades.
O filme tem dois heróis e uma heroína. Um deles é um médium que vê nesse "dom" uma maldição, fruto de um erro médico que o destrói (não consegue ter vida profissional ou afetiva). O outro é um menino que perde um ente querido e fica desesperado procurando alguém que "diga" ao morto que ele sente saudade e que não sabe viver sem ele.
E a heroína é uma jornalista famosa, doce e generosa, que tem uma experiência de "quase morte" como vítima de um tsunami. Ela ficará obcecada por procurar respostas para o que sentiu, levando sua vida pessoal e profissional à beira do abismo.
Os mortos no filme não são esses seres falsamente poderosos que fingem poder "fazer nossa vida dar certo", como é o caso da farta "economia do além da vida" que se aproveita de nossa agonia.
A vida após a morte (vista como uma possibilidade séria no filme) pode ser apenas "mais do mesmo". À diferença da cambada de picaretas que o menino encontra em seu caminho (essa turba que vive de enganar as pessoas falando coisas como "sua vida vai mudar se você fizer X" ou "estou bem, mamãe"), o filme eleva essa angústia ao seu sentido trágico piedoso: somos quase sempre egoístas e covardes e poucos são corajosos e generosos, mesmo em se tratando do "além da vida".
Saber (de fato) que existe vida além da morte pode ser um ônus terrível. Conseguir falar com um ente querido morto pode custar sua sanidade. Seguir seu desejo até o fim pode te destruir. Continuamos na escuridão. Só a rara beleza da coragem e da generosidade ilumina.
Para Clint Eastwood, devemos sempre nos ajoelhar diante desta rara forma de beleza.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O amor sem erotismo não é amor

O amor sem erotismo não é amor

10/01/2011
“Eu amo você, mas eu não te desejo”. Essa é a regra do amor que é pregada hoje em dia. Ou seja: o amor é uma força de união, literalmente falando, mas ao mesmo tempo, deve ser uma força de repulsão, pois dele deve ser tirado o desejo. O amor sem desejo, nós sabemos bem, não existe, não é amor. Mas, diante da força dessa propaganda demoníaca, que destruiu o amor, ficamos com medo de voltar a reconstruí-lo e, então, cedemos à mentira.
Essa mentira permite que possamos pregar o amor sem amar. Não desejamos ninguém e, como o amor não é mais desejo, podemos dizer que amamos. Eis aí o ridículo paradoxo em que nos enfiamos. E foi assim que esvaziamos de conteúdo o amor.
Inventamos o amor fraterno, o amor-amizade, o amor pela humanidade, o amor pelos filhos, o amor desinteressado. Ou seja, inventamos um monte de coisas que nada tem a ver com o amor. Pois o amor ou vem com o forte componente do desejo, da união, ou não é amor.
O amor pela mãe. Há amor de filho pela mãe se não há o desejo de tocar a mãe? Há amor de mãe pelo filho se esta não quer tocar o filho? A idéia de que podemos amar sem o nosso corpo, sem o contato, sem o desejo que se direciona para o contato corporal, o prazer do toque, é uma mentira enorme. Um truque do Diabo. Tanto é do Diabo que vem com o nome de que é de Deus. Ora, se fosse de Deus, não viria com nome nenhum. O que é de Deus, por definição, para nós Ocidentais cristãos, é universal.
Quando Freud anunciou que o amor nada é senão uma transformação de prazeres do início do ciclo vital e que, portanto, amor e sexo não tinham a separação que a sociedade moderna havia lhe imputado, é claro que houve revoltados aqui e ali. Quem se revoltou? Todas as forças do Diabo! Sim, pois Freud estava simplesmente dizendo aquilo que iria destronar o Diabo: o prazer é algo natural. Nós o regramos, é claro, temos nosso ethos e nosso mores, pois se assim não fazemos, não trabalharíamos, ficaríamos o tempo todo só em função do prazer e, então, pereceríamos. Mas o fato de o regrarmos não significa que ele tenha de ser extirpado. Ao contrário, nós o regramos para aproveitá-lo ao máximo. Revelar isso fez o Diabo pegar sua trouxinha e desaparecer. Justamente Freud, que era completamente ateu, devolveu a Deus o que era Dele, dando um tombo no Diabo. Este, por sua vez, teve de ficar circunscrito ao convívio com os setores menos cultos da sociedade.
Não podemos amar sem desejo e o desejo não existe sem que esteja, antes de tudo e afinal de tudo, envolvido no corpo-a-corpo. Não amamos uma tarântula. Mas amamos nosso gato. Não amamos uma mulher cheirando alho. Por isso, se condenamos uma mulher à cozinha, temos de ter uma amante que fique cheirosa. Quando alguém passa a mão na ferida do leproso, não o faz “por amor”, no sentido próprio do amor. Mas o faz a partir de uma profunda negação do amor, cedendo tudo ao dever. Ora, se cumprir o dever dá alguma satisfação, isso já é outra coisa.
A deserotização do amor que, enfim, promoveu ao estrelato os termos paralelos a eros, as palavras ágape e philia, foi um grande engodo. É necessário sempre lembrar, para desfazer esse nó, que ágape e philia nunca foram outra coisa senão palavras, somente eros era palavra e, ao mesmo tempo, um demiurgo. Como dar prestígio ao amor desterrando uma entidade divina para substituí-la por palavras, meras palavras? Essa operação se fez, sabemos, mas disso não resultou nenhum ganho para vivermos e entendermos o amor, resultou no falseamento do amor.
É claro que vários entre nós somos suficientemente toscos para achar que não desejamos a mãe ou o pai ou os filhos etc. Pois, se os desejássemos – assim pensam os toscos –, então, teríamos de fazer sexo com eles, ou seja, ter com eles algum tipo de penetração sexual. Pessoas que pensam assim são as mesmas que acham que todo homossexual tem prazer se for penetrado. Essas pessoas são as que perderam, elas próprias, o sentido do erotismo. Elas foram endurecidas pelas palavras mentirosas.
A idéia de tornar o amor seccionado, de modo a dizer que há tipos de amor, jogando para fora do campo erótico o amor que seria o mais valorizado, e que então seria denominado verdadeiro, foi um erro. Por ser um erro, preferi dizer que foi coisa do Demônio.
Sei que alguns vão ler esse artigo e vão reclamar. Vão voltar à tecla da divisão dos amores. Mas os que reclamarem e, no entanto, ainda tiverem um pouco de inteligência para se auto-analisarem com cuidado, saberão do que estou falando. Em relação aos que não conseguirem isso e, então, espumarem de raiva, não haverá o que fazer por eles a não ser ter pena. São aquelas pessoas que restaram ao Diabo.
© 2011 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ.

PS: Texto retirado do blog do Prof. Paulo Ghiraldelli.
http://ghiraldelli.pro.br/2011/01/10/o-amor-sem-erotismo-nao-e-amor/

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Vítimas

LUIZ FELIPE PONDÉ
Vítimas


Somente ingênuos sem cura e mentirosos podem confiar na bondade das crianças

NÃO CONFIO em "vítimas". Explico-me, antes que o plantão dos humilhados e ofendidos grite. Claro que existem vítimas no mundo. Brancos que escravizaram negros, negros que comercializaram negros, homens que batem em mulher, mulheres que torturam homens que as amam até destruir neles qualquer resto de dignidade, gays que perseguem pessoas porque são diferentes deles (surpresa?), homofóbicos, crianças espancadas em casa e humilhadas nas escolas por outras crianças, enfim, há vítimas por todos os lados. Não me refiro a este tipo de vítima "óbvia" quando digo que não confio em "vítimas".
No caso das crianças então, eu aconselho a leitura do sensacional "Senhor das Moscas", de William Golding, pra quem afirma que o mundo seria melhor se deixássemos a "criança que existe em nós" ensinar os adultos maus como governar a sociedade. Risadas...
Neste livro, crianças abandonadas ao seu destino num local desconhecido criam uma sociedade cruel, autoritária e injusta, aos moldes do humano, demasiado humano. Somente ingênuos sem cura e mentirosos podem confiar na bondade das crianças.
De certa forma, elas são mais cruéis do que adultos, porque estes respondem de modo mais fácil aos constrangimentos morais baseados na "economia de interesses mútuos" (se você tem algo que me interessa, tendo a ser mais condescendente com você) e na vergonha social (não basta à mulher de Cesar ser honesta, ela deve parecer honesta). Estes são dois pilares essenciais do convívio moral coletivo.
Crianças são mais "livremente" violentas e invejosas. Humilham os mais fracos de modo despudorado, excluem qualquer um que seja "diferente" e gostam de esfregar na cara dos mais pobres tudo o que têm. Chato, não é? Também acho, mas fazer o quê?
Quando digo que não confio em "vitimas", refiro-me àquele personagem que toda família tem pelo menos um.
Você identifica facilmente uma dessas "vítimas" em reuniões de fim de ano ou em festas familiares fazendo o culto de si mesmas. Elas comumente acusam aos outros de "só pensarem em dinheiro" e de serem insensíveis. Normalmente essas "vítimas" não conseguem ganhar dinheiro e vivem graças à ajuda dos outros -claro, os mesmos que "só pensam em dinheiro".
Outro traço é a "sensibilidade aguçada" e uma "outra qualidade de consciência" -esta, então, é o fim da picada. Normalmente, pessoas assim adoram "arte-terapia". O apego à espiritualidade interesseira também é muito comum.
A "sensibilidade aguçada", então, me emociona (risadas). Elas choram com facilidade diante da própria sensibilidade. Aliás, este choro seria uma prova de sua qualidade de consciência maior do que a dos outros, aqueles miseráveis seres endurecidos pela aspereza infernal que acomete os que são obrigados a pegar a vida pelos cabelos e domá-la a cada dia, sem perdão.
Na realidade, estas "vítimas" costumam cobrar dos outros aquilo que elas nunca dão: atenção, cuidado, amor desinteressado, lealdade.
Experimente pedir a uma delas alguma coisa: estarão ocupadíssimas com alguma coisa "superimportante" naquele momento "superimportante" de suas vidas "superimportantes".
Pessoas assim costumam ser muito sensíveis ao sofrimento dos cães e gatos. Choram se virem algum animal sofrendo -mais uma prova de sua superioridade ética (risadas). De novo, antes que o plantão dos humilhados e ofendidos de alguma ONG a favor de piolhos sem lar grite, adoro cães, não tanto gatos. Mas eles também têm "direito" à felicidade, claro.
A chave para o amor aos animais neste tipo de "pessoa sensível" é que amar animais é muito mais fácil. Raramente eles o traem ou o expõem ao ridículo ou o abandonam. Por isso, hoje em dia (uma época dominada pelo marketing de comportamento) é tão comum gente que adora animais e detesta seres humanos. Tem até gente por aí que acha que homens e bichos deveriam ter os mesmos "direitos". Um dia macacos terão direito ao voto?
Enfim, cuidado com quem se acha "vítima" de um mundo insensível e dominado pelo dinheiro. Ela é, provavelmente, a mais insensível e interesseira de todas.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Demônios no espelho

     Inicio 2011 com mais um texto de Luiz Felipe Pondé a quem terei a honra de conhecer pessoalmente próxímo mês num curso na Casa do Saber. Comecei 2011 literalmente encharcada..rs choveu na virada... mas intimamente eu amei... foi como se "lavasse a alma", senti como se aquela água bendita levasse todos os desabores de 2010 estava limpa e renovada para enfrentar 2011....


LUIZ FELIPE PONDÉ
Demônios no espelho


Algo do destino depende dramaticamente de nós, mas nunca sabemos em qual medida



NÃO, NÃO acho que o homem seja em si mau. Não creio num "em si" do homem. Refiro-me a "homem" como espécie e não como gênero. Prefiro a palavra "sexo" porque ela tem cheiro de "peso" do corpo (e para mim, tem cheiro de corpo de mulher) e a palavra "gênero" tem cheiro de assembleias militantes cheias de gente chata, feia e autoritária. Assembleias manipulam todo mundo para votar no que elas querem. Sim, eu fiz parte do movimento estudantil e estava em 1979 no Centro de Convenções em Salvador no congresso de "reconstrução" da UNE. Baseado em experiências como essas é que sempre julgo infantil quem acredita em "decisões coletivas e democráticas". Risadas...
Voltando ao que queria dizer, não acho que o homem seja mau em si.
Acho que somos sim uma espécie atormentada, perdida num espaço minúsculo de sua alma insegura e incerta e num espaço gigantesco de um universo escuro e cego. Esmagada entre um destino certo (a morte, a derrota) e opaco (algo nele depende dramaticamente de nós, mas nunca sabemos em qual medida).
Acusam-me de niilista. Reconheço que há algo de chique nisso. A medicina antiga já relacionava a melancolia à inteligência, não? Alguns apostam em traumas infantis avassaladores na minha infância. Devo tê-los muitos. Mas minha família nunca deteve o monopólio da miséria humana. A miséria humana é um "bem" dividido democraticamente entre todas as famílias que são, cada uma de sua forma, todas infelizes.
Sou daqueles que suspeitam que os traumas, as obsessões e taras é que dão consistência a uma personalidade e não os contos da Branca de Neve ou do Papai Noel, ou os bons sentimentos porque estes quase sempre são falsos. Aliás, a Branca de Neve é mais "atraente" nos momentos de agonia do que quando desperta com o beijo do príncipe. E o Papai Noel fica mais interessante quando teme que finalmente tornou-se velho demais e por isso não consegue carregar mais presentes. Será ele ainda amado se não trouxer mais presentes ou afundará na solidão como a maioria dos idosos "sem uso"?
Mas hoje ficou na moda dizer coisas do tipo "encontre Papai Noel em seu coração e você terá esperanças". Que horror que é ver a "inteligência" parasitada pelo oportunismo da autoajuda, se vendendo barato como brinquedo feito na China.
Sim, sofremos, mas não me interesso nem pelo sobrenatural, nem por "brinquedos chineses". Prefiro soluções pontuais para os grandes dramas da vida. Pagar um bom terapeuta, ir ao cinema, ler um bom livro, arriscar um beijo na hora certa, tomar um bom antidepressivo quando a coisa pega, levar o filho ao médico quando ele tem febre, rezar (para quem o faz) quando nada mais funciona, apostar no mistério da vida quando cansamos da banalidade do cotidiano.
Contra a mediocridade da literatura de autoajuda travestida de "psicologia" para as massas infelizes, prefiro a psicologia de Ingmar Bergman, o grande cineasta sueco. No seu maravilhoso filme "Fanny e Alexander", de 1982, o bispo da cidade (da igreja protestante), o "malvado" da história, se casa com a bela e recém viúva, mãe de Fanny e Alexander.
Na cena em que ele já agoniza diante da morte, ele inveja a capacidade da esposa de ter "tantas máscaras" diante da vida, enquanto ele tem "apenas uma", aquela monstruosa que vemos ao longo do filme: um homem cruel, que usa o ministério religioso como forma de destruição da vida ao seu redor. Em desespero, ele confessa que muitas vezes tentou arrancar essa máscara do rosto, mas nunca conseguiu porque ele já não tinha rosto sem ela.
Ele não é "mau em si". Ele é, como todos nós, inseguro, desamparado, abandonado num mundo que vaga sob uma abóbada azul vazia (imagem comum na obra de Bergman). Alguns sucumbem mais violentamente aos demônios do que outros. Alguns negam esses demônios dizendo que eles não existem. Eu prefiro vê-los no espelho todo dia porque eles são o meu rosto.
A literatura de autoajuda é apenas uma máscara vendida a R$ 1,99. Miserável falta de respeito para com uma espécie que luta ancestralmente contra os próprios demônios.